Tudo são vontades
Vontades.
Não me trazem vantagens
São mistos de quero e adoro,
Só aumentam se demoro
Se satisfaço, comemoro
Mas sei que mesmo com tanto cansaço
Desse sentimento me desfaço
Vontade.
Ela cresce do nada,
se disfarça de saudade,
De falta, tédio, sede
E até se acaba
Faz favor de voltar
Quando está de volta,
Escurece o pensar.
Tudo são vontades.
-R.C.
Genuíno
O amor de verdade pode ser bonito
E não temer perda
Querer felicidade
Mas quer dizer que meu amor,
O da realidade,
O que eu sinto
É falso?
Eu não preciso de amor budista
Só quero alguém que fique e insista.
Heresia
Se meu destino transita
Entre o que é e o que imita
Distinguo o que me irrita, como me excito
E escolho o que rejeito, o que aceito.
Não vivo todo afoito,
Há o que me anima
Agora, com dezoito
Não posso ver por cima
E quão fácil seria?
Tratar ilusão como heresia?
-R.C.
Ódio intrínseco
Algo que odeio e o quanto eu quero te odiar
Mas não consigo
Eu queria bater a porta, trancar, jogar a chave longe
Meter móveis na frente
Tudo pra não ver nada que toque tu
Rupi Kaur acertou na mosca:
O ar não tem uso,
A luz não é bem vinda,
A água sujismunda.
Mas não consigo.
Se fosse eu no teu lugar, não me perdoaria.
-R.C.
Passou já o tempo de ir
Chegou a hora
Eu tenho de deixar de lado
Aquilo que me serviu,
Mas me limita.
Então agora,
Jogo pro passado
Isto que curou,
Mas irrita;
Que inovou,
Mas imita;
Me serviu
Não mais.
Sem mais restrições,
Sem mais precauções
Que seja o que for.
Escalas
Adão corre. Sai correndo pelo corredor extenso e frio da saída do avião. Somente com uma mochila levemente preenchida e uma garrafa d’água nas mãos, não podia ser mais econômico quanto a espaço e bagagem. Muita gente olha. Quem sabe julgando-o por marcar escalas tão próximas, quem sabe só observando. Ele tem pressa. Muita pressa.
Saindo do portão A1, ele olha para os lados e busca uma tela para ver o voo com destino à Bagdá. Os olhos passam rápido pela tela e finalmente, encontra-D1. Coincidência? Talvez. Mas, se tratando do aeroporto de Dalas, um dos maiores do mundo, tudo é possível. Ele é preenchido pela sensação de ansiedade, como se fosse a madrugada antes de um passeio de escola.
Caminhando com velocidade, seus olhos passam pelos olhos estranhos, buscando familiaridade em cores, sentimentos, letras e números. Tantos olhos. Sem nome e sem personalidade, barro a ser moldado no momento no qual ele faria uma pergunta. Mas nada. Não que ele esperasse encontrar algo ali, mas a ansiedade não o deixava pensar normalmente, racionalmente. Era como se fosse controlado por algo, mesmo que fosse dono de suas ações.
Depois de muitos olhos, corpos, três letras e uma quantidade impressionante de números, chega no bendito portão. D1. O avião havia acabado de chegar, pela quantidade de movimento entre os comissários de bordo e passageiros. Ele vê um banheiro a poucos passos, então resolve ir até lá, molhar o rosto, retocar o desodorante, escovar os dentes e etc.
Olhando-se no espelho, a euforia o fez ver cores nunca antes percebidas em seu próprio rosto. Sua pele tinha tons não lembrados- era como olhar-se pela primeira vez seu reflexo. Após 12 horas de voo até ali, era inacreditável como parecia que tudo tinha começado exatamente ali.
Saindo do banheiro, escaneia novamente os olhos do ambiente. Dessa vez, ele encontra.
Era Lilian, uma antiga paixão de adolescente e recém-adulto. Quanto tempo havia passado desde que se viam! Imediatamente ela avista ele também, e dão um abraço. Aquele cheiro era impressionantemente nostálgico, como bolo de chuva. Remetia a uma maciez, uma inocência, persistência tão distantes, mas extremamente recentes. Para Adão, era quase como fosse seu primeiro amor, novamente.
Eles conversam; ela sobre seu tempo em Bagdá, sobre todas belezas, as pesquisas, o seu envolvimento com a política internacional, guerras intelectuais- e destoa por 4 minutos ininterruptos. Ele só ouve-a discursar, atento ao dito, mas com olhares para os trejeitos. A boca articuladíssima, a imposição que tinha tanto pelos gestos quanto pela escolha das palavras, o olhar duro (parecia relembrar enquanto falava, como se, mesmo olhando nos olhos de Adão, visse algo a mais; a guerra, as crianças pelas quais lutava, as irmãs tiradas de situação abusiva, a quantidade enorme de homens reprovando-a por ser ‘forte demais’), a tensão carregada nos ombros.
Terminando o discurso, eles caminham até o café mais próximo dali- o voo dela seria em 1 hora, então ela não tem pressa como disse. A conversa desenvolve para campos mais nostálgicos; de repente, lembravam aos poucos do namoro, curto, mas relevantíssimo, altamente influente apesar de aparentar só um caso de poucos meses- afinal, relacionamentos devem ser grandes (ou eternos). O passado fica para trás, mas não deixa de influenciar o presente. Sem mais delongas, ao perceber que ela não tem compromisso algum, Adão toma o primeiro passo e a beija.
O resto não é relevante para o detalhe, apesar de já passar na mente do leitor. Após muitos beijos, conversa, ela entra no avião e voa de volta para casa, longe dali e longe da casa de Adão. O pequeno caso do passado desenrolou em um pequeno caso no presente, e vira pretérito novamente. E tudo bem.
Pouco depois de ela ir embora, Adão recebe uma ligação. É Luís. Ele atende e já houve questionamentos de todos os tipos, mas focados no fato de ele ter sumido, do nada, e ficado 12 horas desaparecido. Não há resposta do porquê, mas afirma que já está voltando.
“Você
viajou pra onde dessa vez?”
“Dalas.”
“Ela sabe que já aconteceu algumas vezes?”
“Não. E nem precisa. Essa é a última vez.”
“Ave… após dez anos? Você contou a ela dos teus filhos? Da esposa?”
“Não. Só queria vê-la entre meu voo de ida e de volta.”
“E como você sabia? Arriscou?”
“Eu nunca arrisco. Foi só uma transição.”
“O que falo?”
“Que tive uma emergência. Não é como se ela tivesse opção.”
Travesseiro
Os nossos filhos já tinham nome
Nenhum sonho passava fome
Como um ciclo não se consome
O sono agora some
Não creio que foi tão momentâneo
O futuro era certeiro e espontâneo
O presente tão costumeiro tão rotineiro
E sem mais nem nada, foi-se ligeiro
Foi o que eu fiz? Mas o que fiz?
Foi falta de fazer? Eu tinha como saber?
Há jeito de consertar? Você sabe que eu quis
Eu queria um destino, você tão indecisa
Tão sem sentido e não precisa
E eu já pensando em Ezequiel e Maria Luiza