Tem tema mais geral, maior (em relação aos Mini-textos.

Privado

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Queima. Minha pele se contorce a cada fração de segundo pelo toque do sol. Poderia ser pior. Ele podia estar inteiro me tocando, mas essa grade o impede. Queria poder quebrar, rasgar, destruí-la. Pular para minha liberdade enfim, sem medo de perder tudo. Esse pensamento foi bobo. Afinal, que tudo, se justo isso me faz querer sair deste lugar?
O silêncio é insuportável. Não o de fora, inexistente perante os gritos e exigências feitos pelo meu carcereiro, mas o de dentro, pertencente a uma alma cansada de se defender, pronta para tomar o necessário, ainda que seja entorpecente e doloroso. Me pego a admirar essa dor. Ela provém de algo mais antigo, antecedente à minha prisão, simbolizado por essa grade: o suicídio. “Como admirar o suicídio?” você deve estar se perguntando. É simples, na verdade. Ele criou essas grades. Claro, ela representa algo muito maior, mas… ele criou. A necessidade de manter prisioneiros (assim como eu) longe das janelas criou grades.
Mantenho-me o mais longe possível delas para ficar longe da luz, no canto desse lugar. Olho para o céu de longe e desejo vê-lo escuro e vazio, como numa noite nublada. Seria o momento perfeito para deitar-me nesse chão frio e, pouco a pouco, morrer de dentro para fora. Faço o começo desse processo agora mesmo, encarando o teto sem graça, e tento lembrar dos bons momentos da minha vida.
Minha tentativa é falha, e as únicas lembranças que me vem são das minhas costas vermelhas, machucadas pelo abuso de poder dos donos do meu cárcere. Em seguida, recordo momentos de negros de minha consciência, quando minha mente ficou tão barulhenta, e sinto falta disso. É menos desesperador pensar que o barulho dentro de mim impedia ouvir o externo que, mesmo com o silêncio da minha cabeça, o mundo parece mudo. Esse processo acaba em um segundo, quando ouço o grito (provavelmente repetido milhares de vezes):
– Vem logo moleque, eu to mandando!

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Liberdade manipulada

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Sou um anarquista espiritual, eu não sigo regras, crio regras. Se os outros não me dão minha liberdade, eu crio-a. Do jeito que quero, do jeito que posso.Confrontos de nada são úteis, são sinônimo de desigualdade de poder. Algo só é justo quando há essa igualdade, quando há igual chance de êxito. A justiça é essa, não a clamada igualdade perante a lei, a igualdade econômica. Claro, poder é errado, mas a comprovação da tese de criação de poder por si vem de uma lógica inegável: quando há igual poder, é como se não houvesse poder nenhum. O problema é: até onde posso ir para obtê-lo?
Quando se é o oprimido, não é nada mais do que justo o uso da manipulação para a obtenção de poder. Grandes exemplos da história fizeram isso, como Napoleão: quando foi à batalha com número menor de homens, tornando eminente sua derrota, o General levou a luta para um terreno vantajoso, tornando assim, a situação igual, onde a habilidade se tornou a questão principal. Ele igualou o poder. Uns tinham força, outros a inteligencia. Isso é justo. Então, se sou manipulador? Não posso negar. Faço isso da forma mais fina e justa, minhas mentiras são intencionadas, assim como é o mundo. Que seja assim! Uso a forma ridícula do mundo a meu favor, tornando ele igual.
Certamente me perguntarão um dia se é certo um anarquista ler Maquiavel, o Florentino que dominou o conhecimento sobre o Poder, algo aparentemente contraditório, visto que Nicolau ensina a conquistar o poder e anarquistas querem derrubá-lo. A resposta é simples e direta: necessitamos saber como é a conquista do poder, pois, enquanto a sociedade Ideal não é alcançada, temos a obrigação de ganhar para si e para seus iguais esse poder. Claro, no sistema Capitalista isso é quase impossível, pois nele, Poder vem do Dinheiro e Dinheiro é Poder. Governos (meios de opressão da Elite sobre o povo) são mandados e desmandados por interesses particulares e econômicos. Não se engane com a falsa crença de o governo mandar na economia, mas a economia manda no governo. Portanto, quanto mais soubermos como ganhar poder perante essa enorme máquina escravizadora, justificada por um tal “contrato social” não assinado por ninguém e imposto a todos, é a vantagem que teremos sobre o mundo. A utilização de uma crueldade maquiavélica contra ela.
Sou anarquista espiritual sim, pois a igualdade nunca será dada sem luta. Ela é tudo que tenho, que terei, tudo o que posso fazer. E lutarei. Até o fim, ferozmente pela minha liberdade e do outro, pois só seremos livres quando um Irmão for tão livre quanto o outro. E teremos sofrimento para isso. Usaremos todas as nossas forças para isso.
Sou cruel. Claro que sou. Toda luta é quando não se luta só por si, mas por muitos. Sendo assim, não vejo crueldade nenhuma em manipulações. E vejo toda. Outros falarão que a verdadeira crueldade é com eles, mas na verdade, é consigo por ter que usar de manipulação para poder existir sem ser essa merda influenciável chamada de indivíduo. A manipulação é o meu instrumento para poder ter meu direito e dever do outro inalienável, denominada liberdade.

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A sombra

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Em nossa vida, andamos à procura de ídolos. Sim, ídolos. E em nossa cabeça, eles são exemplos, idéias. Eu ouso dizer que, nela, são feitos de pedra, imutáveis e invencíveis.

Quando pequenos, eles são nossos pais. Fortes, rápida, inteligentes, e de uma forma a parecer consciência de tudo e de tudo poder fazer. Crescemos um pouco, e viram os super-heróis. Com sua coragem, benevolência, sempre dispostos a ajudar o próximo, eles são os favoritos das crianças. Entre a infância e adolescência, temos um período onde os ídolos são distantes, mas próximos por bombardearem nosso dia a dia: celebridades. Seja ela da música, cinema ou TV, a admiração é enorme. Há quem ame Justin Bieber, há quem seja vidrado em Axl Roses. Há quem idolatre Jonny Depp, também quem idolatre Emma Watson. Depois, dividem-se muito; há quem veja em Ghandi um exemplo. Há quem nunca não solte palavras que não sejam de admiração sobre Nikolas Tesla. Eles são símbolos de revolução, mais próximos mas ainda longe… Com o amadurecimento, a idolatria muda. Passamos a admirar coisas próximas do cotidiano, como um chefe, um professor da faculdade, um político ativo. Até mesmo pensadores, nomes desconhecidos pela maioria, mas por quem você sente uma admiração enorme.

Há quem tenha admirações muito mais complexas. Já houve demonstrações de admiração por si mesmo, o que chamamos popularmente de narcisismo (o que não necessariamente é a definição correta, mas não convém). Numa linha próxima, mas longe de parecida, temos a admiração por si mesmo, mas no futuro- mais precisamente, em respeito ao dono discurso, 10 anos. A filosofia por trás disso, não é o narcisismo, mas a expectativa que temos de nós mesmos, de tal forma, que nunca seremos nós em 10 anos.

Descobri meu verdadeiro ídolo em um lugar extremamente incomum: na sombra. Nela, ficamos muito próximos de nossa idade (diferente de nós em 10 anos) mas muito melhores. Nossa sombra é alguém muito melhor que nós mesmos, por ser a versão mais natural e nua, não a escondida por trás de roupas, atitudes falsas e máscaras. Não me entenda mal, não estou julgando a existência tudo isso, esse não é meu objetivo. Mas, é muito claro o fato de, quando a luz bate em você e forma aquela linda filha numa parede, pano, uma sombra ela não tem todos os pesos carregados por você. Ela mostra seus músculos de forma acentuada, sua expressão sempre condizente com o corpo, ou seja, verdadeira. Sombras não transmitem falsos sorrisos, somente respirações apaixonadas. Por isso, meu herói, ídolo, objetivo, é a minha sombra, apesar de eu nunca conseguir ser exatamente ela, pois, assim como eu, ela é instável. 


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Liberdade de Shaolin

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Abro meus olhos e vejo os primeiros raios de sol entrando pela janela. Não é nem perto do meu horário, mas eu não dou importância para isso. Meu instinto me diz que é hora de levantar. Olho o cômodo pouco iluminado e acendo uma vela; As coisas estão exatamente como as deixei no dia em que cheguei no Templo.

Hoje, já tem 13 anos do meu abandono da vida de governador civil e do início da minha procura pela paz. Passei por uelemá, mas não cheguei nem perto do que procuro. Sentia-me igualmente poderoso, influenciador, alguém que, por ter maior conhecimento (adquirido após um tempo de estudo hábil do Alcorão e da Suna), tira a humanidade dos meus semelhantes. Depois, fui ao campo, trabalhei como um semi-servo, achando que, por obedecer, iria apaziguar meu espírito. Fui igualmente falho. Eu estava abandonando minha própria humanidade. Por mais que eu quisesse o bem nos 3 lugares pelos quais passei, eu me sentia corrompido, tanto por “mandar” quanto por obedecer.

Cheguei ao ponto de achar que, na minha terra natal, a China, nunca encontraria a verdadeira paz. Viajei, mas não durou, pois nada me apetecia, desde a beleza da terra do Papa até o luxo dos Sultões. Até que, com todo esse conflito interior, decidi passar uns dias num mosteiro afastado de tudo. O Templo de Shaolin, o mais próximo que cheguei do que minha mente pedia.

Aceitaram-me de início, me alocaram neste quarto e me explicaram como era o funcionamento do lugar. Homens e mulheres não eram distinguidos, todos podiam frequentar qualquer parte ou ambiente, sem restrições. Não havia regra, mas, normalmente, os almoços eram feitos ao meio-dia pelo sol, e os jantares quando a lua já se apresentava dominante.

Os lugares eram o quarto, os campos de plantação e gado, a sala dos espelhos, o “refeitório” (que funcionava como cozinha também), um salão usado para enfermagem e outro vazio. Não havia cozinheiro, faxineiro, camareiro ou camponês. Ali, os “bens” eram fruto do trabalho individual e o excesso era comunitário, para emergências. Por se tratar de um mosteiro, eu obviamente pensei que, por não ser religioso, iria ficar uns dias para a meditação (que era feita em qualquer lugar), porém, estou aqui a mais de 5 anos.

Saio do quarto, me encaminho para o campo. As plantações de arroz se alastram por quilômetros, e o gado, que dorme, é suficiente para alimentar uma cidade, mas a simplicidade do mosteiro envolve (inconscientemente) deixar os animais viverem seu estado natural, e a natureza também.

Shaolin fica num vale praticamente sozinho na região, por isso, você pode se ver cercado de montanhas. Na maior delas, nota-se uma escadaria enorme, que dá numa pequena construção vermelha e dourada, onde ficam as águas. É para lá que vou.

Piso nos degraus da escadaria, gelados pelas horas sem contato com o sol, que a essa altura, apresenta um nascer esplêndido. Cada passo que dou relaxa mais o meu psico que a ótima noite de sono que tive, e me faz sentir cada pequeno músculo no meu corpo, fazendo uma espécie de Nirvana.

Ao fim da minha subida, vejo claramente toda a construção. Os pilares de madeira avermelhados, com todas as suas linhas características da árvore que foi cortada, O sol está quase alinhado com o topo da pequena casa, dando uma sensação de queimação na minha nuca. Apesar de ter feito uma subida de 3 horas, não me sinto cansado. Entro, e na água descem 3 fios de luz, posicionados em três pontos de divisão na jóia da Roda do Dharma desenhada ali.

Sento-me ali, fecho os olhos e medito, entrando num transe que só acaba quando abro meus olhos novamente. Sinto a força da claridade contra meus olhos, mas ela vai abaixando, e olho para o céu pela grande janela a minha frente, notando nas nuvens passando, carregadas e negras como meu espírito antes de encontrar esse lugar.

Mais ao fundo, nuvens leves com as quais me identifico, porém meu desejo é chegar ao céu azul. Ao olhar abaixo, vejo a imensidão da floresta que cerca os mares de morros, um verde convicto e belo, ainda não tocado pelos ambiciosos, só conhecidos pelos homens em seu estado mais natural. Mas, entre todas essas arvores belas, vejo uma movimentação que eu já conheço: a formação militar clássica da Guerra  Civil que está acontecendo.

O mais surpreendente não é a formação em si, mas o fato de ser facílimo de notar o quão feridos estão os soldados. Em aproximadamente 4 horas, eles chegarão ao templo, lugar que suponho ser o destino.

Desço calmamente as escadas, e na metade do meu percurso, a chuva começa. De onde estou, consigo ver todos fechando janelas e abrindo portas para quem quiser entrar. No fim, calculo que temos ainda uma hora antes da chegada dos feridos.

Abro a “enfermaria”, avisando a todos o que vi, e já vejo o movimento de preparação, colocando colchões forrados e ferve-se água, prepara-se alimento e macas, até que nossos “convidados” batem à porta.

-Olá?- diz quem aparenta ser o general daquela tropa – Estamos muito feridos, soubemos da existência deste mosteiro e precisamos da ajuda de vocês, meus soldados estão gravemente feridos.

Abrimos as portas e a tropa entra. O general logo se apresenta, seu nome é Bakiu Tremlaa,  e, logo de início, já conta a história de como e por que estão ali.

“Estávamos em uma batalha ao norte, contra revoltosos que reinvidicavam a devolução de impostos e posse de terras ao líder local. Meus soldados não tinham pólvora, somente nossas práticas no Wushu. Mas inesperadamente, os revoltosos utilizaram espadas e armas de fogo. Foi um massacre.

Mais da metade morreu, apesar de termos batido em retirada. Venho procurando um descanso e cuidados desde então, mas o governo já nos tomou com inúteis, mesmo com nossas habilidades”

Ofereci-me para dividir dormitório com Bakiu enquanto não havia instalações para todos, e isso aconteceu. Em certo horário, vou para o quarto, deito-me. Quando ele chega, só deita na cama posicionada abaixo da minha e dormimos silencio e impessoalmente.

E assim foi durante 3 dias.

Na manhã do 4º, o colega puxa um assunto. Pergunta meu nome e lhe respondo, friamente, Kwok Yuen. Logo me reconhece como ex-governador civil, e daí para frente criamos um tipo de amizade, uma que se desenvolve com o tempo, ficando forte a ponto de, 2 semanas depois, quando os 50 quartos para refugiados foram feitos, Bakiu permanece comigo.

Seguimos para uma rotina um pouco parecida. Acordamos cedo, e minha manhã começa com uma boa meditação no salão dos espelhos, a dele, se fechando no salão vazio. Ao fim de 2 horas, ambos se encaminham para o campo, para plantar e colher algumas coisas, pois logo em seguida, preparamos o almoço e o comemos. A diferença maior são as conversas diárias com seu antigo pelotão, enquanto eu falo com alguma alma também “desocupada”.

Certo dia, o indago sobre duas coisas: a razão das conversas com a tropa e o que faz ele todo dia no salão (o que observo ser também um hábito dos seus comparsas).

Kwok, se eu não me mostrar presente, quem vai mostrá-los o caminho?

-Ora, eles acharão o próprio caminho se deixarem-nos tentar andar com as próprias pernas.

-Entenda, eles precisam ser liderados. Essa é a natureza humana em seu mais elevado ser: uns nascem para seguir, outros guiar.

-Não é verdade- falo firmemente a Bakiu- Vejo bondade em seus atos, mas devo perguntar se não vê como esse poder que tem tanto te corrompe quanto eles.

-Eles sabem quem estão seguindo.

-E o gado só percebe a verdadeira face do pastor na hora do abate. Pergunto-lhe, se tu mandasses seus homens matarem todos nesse lugar, sem exceção, eles não o fariam?

-Naturalmente…

-Portanto, você tem uma influência não saudável sobre eles.

-Vejo seu ponto, mas não compreendo a saída que você procura.

-Bem, olhe o Templo em si. Não há um sequer líder, sim a união de diversas pessoas com um objetivo, unidas por umas vontade de viver de um jeito relativamente parecido. Aqui sim, há a forma natural que nós, seres humanos, perdemos na nossa história. Aqui sim, podemos ver a liberdade expressa em seu grau máximo, onde a minha liberdade permite a sua nunca acabar. Por esse motivo que estou, aqui, o mais próximo da minha paz.

-Desculpe a pergunta mas… você já praticou Wushu?

Já explicando, Wushu é um estilo da arte marcial chinesa, conhecida mundialmente pelo nome de Kung Fu. Essa arte é dividida em 3 partes principais de trabalho individual: corpo, mente e espírito. Apesar de morar na china desde sempre, nunca me aproximei muito, por desprezar o uso da força e achar sublime a retórica, e, posteriormente, a meditação pura. Nas minhas viagens à terra do papa Constantino, li sobre os maravilhosos Sofistas, sobre Sócrates, e admirei-os muito mais que os brutos guerreiros.

Após esse dia, descobri minha resposta para a minha outra pergunta. Todos os dias, Bakiu se punha a treinar incessantemente a Arte, até não ter mais forças para sequer subir alguns degraus de escada (sabe sei lá como que ia para as plantações). Meu amigo passa seus dias preparando-se para um conflito interno, não externo. Assim como eu, ele está perto de sua paz, mas algo falta para atingir o Nirvana.

Outras coisas também aconteceram, como o fim das conversas diárias, que foram substituídas para pequenos encontros semanais, para um treino em conjunto, com o objetivo de lutarem entre si. Todos já estavam bem, mas algo tinha mudado (tanto nos soldados quanto nos monges). Os monges, atrofiados por simplesmente meditarem e plantarem (numa espécie de ora et labora) começaram a, naturalmente, treinar Kung Fu. Os guerreiros, com remorço por toda morte e dor que causaram, por tanta inquietude, começaram a meditar. Começou algo perfeito, começou a Paz.

Bakiu me instrui no Kung Fu, onde eu finalmente encontro um momento de calma (e me torno um exímio artista) e eu o inicio  na arte da meditação.

Aos poucos, os treinos de Wushu passam a ser simultâneos, numa espécie de conexão de Shaolin inteira, sem raiva alguma, somente o perfeito equilíbrio entre o autocontrole budista e a coragem e disciplina dos artistas marciais. Nas lutas, vê-se um “problema”: ninguém ganha. Não pela falta de habilidade, mas pelo excesso e equidade dela entre todos.

Quando vou ao salão dos espelhos, fico no centro e vejo centenas de cópias minhas, todas me imitando, e começo a lutar comigo, travando um conflito apaziguado, que gera em mim a plena sensação de completude, e, depois de algumas horas meu amigo entra, e a luta passa de singular para plural. A luta começa lenta, ainda com falta de força, mas progressivamente avança, cresce, no ponto de quase não vermos os golpes de cada um.

Na hora do jantar, o sino toca e um estranho adentra o salão, trazendo uma carta,que passa de mão em mão e quando chega a minha, leio claramente:

“Aos Guerreiros do Templo de Shaolin, esta convocação para proteger o condado de Tahu.”

 

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Para nunca mais se sentir só

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Andei só. Meti-me nas ruas, a espairecer sobre minha enorme solidão, sem rumo ou objetivo.

Sento-me no meio-fio, chorando correntes, córregos, lagos, riachos, cachoeiras, rios mares, criando meus próprios oceanos, quando dois cães de rua acomodam-se cada um de um lado meu. O da direita tem pelagem preta, olhos caídos e vermelhos, dentes afiados que se expõem bastante a medida que ele abre a boca, sem eu entender a razão do ato. O da esquerda é cinza, mas tem manchas pretas, tão escuras quanto seu comparsa. Seus olhos são igualmente caídos, cheios de remela, seu andar é desesperador de tão lento. Sua expressão só piora com o pelo molhado pela chuva. Ah sim… a chuva. Ela começou momentos após a chegada dos cães, mas eles não se intimidaram. Afago cada um um pouco e sigo caminho. Mesmo andando, deixo o mais lento para trás e o outro me segue uns minutos, mas me abandona onde há mais movimento.
Observo bares abertos nas esquinas, e todos estão acompanhados, mas solitários. A simples companhia de um estranho não é suficiente para afogar um sentimento de solidão, intensificada pelo falar geral. Um falar desesperado, expressando, para fora, todo o vazio presente dentro. Um falar não conversador, somente auto-informador, como se devessem buscar, nos outros, a afirmação de uma verdade qual ninguém ali acredita: a vida vivida por quem ali está, é de fato, boa. Tenho a coragem de notar minha própria solidão, e afirmar ela, sempre atento a tudo a minha volta durante esse trajeto. Atravesso as ruas e encontro um grande bosque.
Ao olhar bem, vejo uma cadeira entre árvores. Talvez seja perigoso, mas, foda-se a minha segurança, sento ali mesmo. A posição permite a entrada de somente um feixe de luz da lua. Em momento algum paro de pensar nela. Em nenhum momento. Minha cabeça é povoada e cheia, ao passo que a minha vida é tão chata e vazia.
Volto a caminhar, atravesso o bosque, e em meio a plantas e plantas, dou de cara com um penhasco, onde só se vê e ouve o imponente mar. Sinto minha carne arder pelos espinhos que me cortaram, a chuva no meu cabelo, ouço atentamente o som das ondas abaixo de mim. Olho o mar e sinto algo estranho, mas presente todo o tempo, e, repentinamente, começo a relembrar a noite que passei. O que me faltaram foram pessoas, mas eu nunca estive sozinho. Tanto o mar, quanto a chuva, quanto a lua, os bares, e os cachorros tinham sido minha companhia, e eu não podia ser mais grato a eles.
 
 

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