Olhe em volta, Renato

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Olhe em volta, Renato
Você está sozinho
E por mais forte que você acredite
Os únicos fantasmas no presente
São os criados por ti no caminho
Que percorrestes, tão ingrato, tão chato
Olhe esses pôsteres
Todos rasgados ou riscados
Sujos de azul ou vermelho
Marcas posteriores
A ataques indelicados
Da sua psiquê um espelho
Olhe seu braço
Todo rasgado e riscado
Teu sangue não é azul ou vermelho
É verde ou preto pisado
Pois na vida ser pisado é teu hábito velho
Na sua história tem esse amaço
Olhe pro teu olho
Todo ramificado ou rabiscado
Das veias um forte vermelho
Falta de descanço
Ele nunca é dado
Até dormir é chão quente descalço
Olhe pro teu pulmão
Todo estragado e gasto
Tingido de câncer preto
Resultado da tua necessidade
De fugir pra tal ilusão
Mesmo tendo tão pequena idade
Olhe para tua vida
Toda caída e falida
Sem amigos ou qualquer um
Que se importe contigo mais
Ninguém que saia da paz
Pra na sua depressão dar zoom
Olhe a sua volta
Essas paredes mais são grades do que casa
Todas iguais por causar dor, me solta
Para fazer melhorar
Você já tem a asa
Só falta voar
Olhe para baixo
Tanta altura parece pouca
E se quer saber o que acho
Não seria idéia louca
Daqui de cima se jogar
Só pra ver o que vai dar
Se solte enfim
Para ver o momento final
Afinal, Renato
Você está sozinho até no fim
Não haverá sequer relato
Do seu fim atemporal.

-R.C.

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Amor tão assim

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O mundo gira
A semana passa
A cabeça pira
Acaba fumaça
Mas é certeira
A sua lembrança

Na música do rádio
Ou da minha mente
O filme da TV
Ou do meu PC

Vai vir durante o banho
Ou durante a depressão
Olhando o céu diurno
Ou no vazio da escuridão
Só vejo em tudo seu olhar castanho
E seu cabelo loiro, em turno

É engraçado como fica
Um apaixonado sem alguém
Você de longe me explica
E eu sentado sem ninguém
No chão frio, azulejo
Sei que não é só um desejo

Tua voz é a verdadeira música
Teus passos a maior das danças
Teu rosto a maior arte plástica
Com teu toque nunca me cansas

Não consigo amar alguém de outro jeito
Sei lá o porquê dessa neura
Mas só preciso disso mesmo: amar a ti direito

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Ansiedade amorphisica

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O futuro logo chega
Não espere sentado
Levante e o receba
Não adianta correr desesperado

Os olhos fecham mas o pensamento vai longe
Nas certezas que temos do amanhã, do hoje
Sono falso tira, um alívio para a consciência
Mas descanço nenhum há, o cansaço ocupa em sua ausência
Ansiedade e nervosismo imperam
A lástima do desespero veneram

Os músculos pesam na cama
Os ossos estralam a toda hora
Do escuro brota a suave chama
Que ilumina junto a aurora
Idéias não fluem
Vontades não há
Levanto desde já
Por aceitar o destino
Motivos os quais não excluem
Meu desespero por sono
Os ruídos de dentro despertam mais
Os de fora a mim, torturado pelo sons
A ninguém transmito meu mal estar, por modos
Sentado com a vela, foco nos seus diferentes tons
A mente vaga
Nada segura
Toda hora
Me esmaga
Trocando assunto
Me levando junto
Morto, já não consigo nem desfocar
Tudo é chamativo, até o travesseiro
É melhor deitar, voltar a tentar de corpo inteiro
Ou a insônia irá me enforcar

-R.C.

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Meu sol

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Foi num campo de flores
Que percebi que ainda te amo
Não eram girassóis, tinham outras cores
O insight que tive foi mais insano
Na falta dessas flores vi como a vida mudara
Para uma eterna noite sem lua, por falta de ti
Meu sol
O astro mais brilhoso pro meu mundo
Há outros maiores? Talvez, mas aquela luz não me alcançara
Somente a sua, meu sol
Sou como sua flor predileta
Caído na sua falta
Sempre te olhando indiscretamente
Sem tentar, automaticamente
Devia ter pego pra ti flores de novo
Mas elas seriam ofuscadas pelo brilho do meu sol.

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​Rotina

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Cada vez mais eu vejo
Que não adianta me esconder
Em atitudes diferentes
Em novos lugarejos
Parece que seu espírito me segue
E agora entendi que não era amor
Era rotina
E não tem aspirina
Que tira essa falta
Dada por sua ida
Você longe assalta
Toda minha vida
Antiga, todos os costumes
Só te esqueço nos cumes
De mudanças bruscas
Mas é só estabilizar
Que vem memória que suga
E só sobra embebedar
E chorar
Ou de novo mudar
Tudo pela fuga
Dessa dor eterna
Mais interna
Meus sentimentos externa
Maldito cotidiano
Que mantive ano após ano
Me mudou, não me engano
Hoje sou mais provinciano

-R.C.

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Tic-Tac

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Tempo passa
E eu tento contar
Mas nunca conto
O que sinto
Sinto muito
Só assim consigo vê-lo passar
Sentir o tempo
Sinto que acaba tudo aos poucos
E que aos poucos tudo acaba
Novos tempos virão
Vou tentar contá-los da próxima vez
O único tempo que contarei
É quando o relógio não mostrar mais
Aí então só peço
O furto no qual contei tanto tempo
O último a escrever
E um em branco para tentar
Quem sabe após o relógio parar
Eu consiga entender o tempo de verdade
 

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​Cortesia

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Fecho os olhos
Mas vem imagens
Abri eles
Mas não consigo encarar
Criam miragens
No meu pensamento
Sem foco algum
Desespero de existir
O pulmão queima
A cabeça dói
A garganta seca
O humor corrói
Dos olhos escorrem
Lágrimas de gavião
Que observa de longe o passado
E mais chora a cada decepção.

-R.C.

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Vale encantado

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A sensação de esquecimento mais pura
Sem preocupação alguma
Sem pensamento fora
Alienação pura
Um autismo coletivo
A tal da utopia
Colocada em realidade distante…
O mundo nunca seria tão perfeito
Mas aqui ele é
Aqui o respeito tem seus limites respeitados
São banais as coisas grandes
E abundantes as pequenas
Lugar que amo
Com gente nada sã
Todos que conheci sentirei saudade
No meu Aruanã

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Pseudeto da existência

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Adão e Eva
Os sete dias da criação, qual etiqueta leva:
História ou estória?
A razão dourada e outras coisas na memória
Fazem uns pensarem em uma entidade
Mas sinto muito falar, mas não tenho piedade…

A existência de leis
Não implica na existência de um criador
As pessoas indicaram Reis
Mas naturalmente tornou-se o ditador

A sociedade tem regras internas
Cujas especificações são eternas
Não houve um decreto
Só um arranjo concreto

O caos jogou-nos no presente
E querem que se apresente
Quem nos deu tal presente

E querem me enfiar pela goela
Um deus que permite tanta sequela
Só porque a física tem padrões nela

Mas veja só!
Não é porque o padrão existe
Que viemos do pó
E da ciência pura se desiste
A lógica do caos é natural
Pra criar-se não precisa Deus tal.

-R.C.

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Há tentações merecedoras da quebra de princípios

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Dois jovens sentavam-se no meio de uma rua qualquer na cidade de Fruta, no interior de Buenos Aires. Tratava-se de uma noite iluminadíssima, pois além dos postes cumprindo seu papel de luz pública, a lua parecia inteiramente comprometida com o mesmo objetivo. Estava fria, uma das mais nos últimos anos, e ambos estavam indevidamente vestidos, o que causava a infernal sensação de gelo.
Mas eles não tinham problema com isso.
Júlio olhava para Rafaella no fundo do mar castanho. Dava pra sentir quase, somente pela cena, a dor ali sentida por ele. A saudade de casa e dela, alguém que inevitavelmente tornaria-se uma lembrança. Mas ele lutava contra estas dores fortemente. Todos o viam. No jeito de abrir os olhos lentamente, esperando, a cada piscada, ver-se novamente na terra natal; no descaso com quase tudo relacionado àquela terra; na cada vez maior quantidade de tempo gasta olhando um horizonte amiúde inexistente, fazendo-o assim encarar uma parede. Só ela perdia esses sinais.
Rafaella estava ocupada tentando guardar cada detalhe daqueles momentos, não em interpretá-los. Notava na companhia agradável, nos caprichos desnecessários, mas apreciados, feitos por ele – como o abrir de portas abandonado há tempos pelo cavalheirismo, o suporte em problemas quaisquer, sorriso em momentos desesperadores para ele também – e, claro, o silêncio da fuga. Sim, a fuga momentânea de sua pequena vida na pequena cidade de Fruta.
Tudo bem que pequena tinha só o nome- para chegar em praticamente qualquer lugar levava, no mínimo, trinta minutos a pé. A população ultrapassava dez mil, mas cada bairro era tão fechado em si que o número pouco importava- um dia Fruta chegou a 200 mil habitantes e ainda se vivia a vida de cidade pequena, onde se conhecem todos os vizinhos e os filhos geralmente seguem o caminho dos pais. Mas, na época, Fruta acabara de passar por um êxodo, então o efeito de “pequenez” estava muito acentuado.
A rua onde se encontravam era uma das muitas cheias de casas abandonadas (umas recém e outras já a muito). Além disso, era fora de qualquer rota de carro, um caminho estúpido para fazer-se a pé, e com irregularidades, tornando impossível o percurso de bicicleta, portanto um paraíso confidencial de uma argentina e um brasileiro, o berço de um romance doído perpetuado na memória, porém com curto prazo de validade. Numa das casas, uma mais nova, provavelmente recém-comprada e logo largada quando vista a situação da cidade, havia um monte de madeiras soltas. Júlio pegou algumas e montou uma pequena fogueira para ambos. Agora, não precisavam de mais nada: teriam fogo, comida, bebida e a companhia um do outro.
Após acender a tal fogueira (pequena, mas com tal poder de aquecimento), ele limpou as mãos em alguma folha molhada ali perto e sentou-se ao lado dela. Segurou sua mão, levou-a até sua boca e foi beijando dedo por dedo até chegar na aliança. Ah, maldita aliança.
Não havia sido dada por ele; não, aquele caso era bem mais antigo e duradouro. A infidelidade dela ainda não havia sido consumada, mas pouco importava pois a do outro havia (e como). Todos sabiam, todos falavam- menos ela, que nem sabia, não falava ou ouvia, mas pensava muito sobre- e ignoravam, sem falar um pingo para Rafaella.
Nem sequer Júlio, a pessoa mais próxima de um amante tido por ela até ali (e seria durante algum tempo até o fim do namoro no qual mais se amava amantes do que se sentia amado) ousava falar diretamente sobre o assunto. Às vezes emergia, em meio aos flertes tão leves e inocentes mas mal intencionados e carregadissimos de emoção, o tópico. Marcelito mais uma vez estava nas festas de amigos “só para macho”, mas nas quais as poucas prostitutas da cidade sempre acabavam entrando. Ou uma viagem ao campo de 1 semana, porém estendida na metade para 2, talvez 3, na qual uma rapariga se encontrava junto- Ah, como aquelazinha vai pagar… como ousa, praticamente na minha frente!- mas Rafaella nunca sequer levantara o tom de voz, sequer reclamara sobre qualquer aspecto daquele tratamento.
Olhando para o maldito anel, Júlio sentia pena e ódio. Pena por ver uma garota com tanto potencial, tanto talento, conteúdo, interesse na vida, presa num relacionamento nada frutífero como aquela cidadezinha pequena e sem graça (boa por alguns meses, mas nada para a vida) e ódio por aquela relação estúpida estar no meio de um amor tão fervoroso e forte, tal como as últimas chuvas de fevereiro, primeiras de março, que começavam do nada e cessavam em um piscar de olhos, após terem destruído o máximo possível. Ele sabia quando essa paixão havia de acabar, e o fim estava próximo: 4 dias.
Não leve-o a mal; Júlio não era indesejável, tampouco bobo. Ele sempre aparecia nas tais festas de machos e nunca pagava uma prostituta. Ele ocasionalmente flertava com uma ou duas meninas. Porém, quando aparecia Rafaella, tudo acabava. Se ele estava com uma puta em casa, esta sairia pela porta de trás se chegasse a garota. Se estava numa festa e ouvia da boca de um qualquer da “tristeza de Rafaella”, sairia dali no mesmo momento, aparecendo na frente da janela do seu quarto para recitar a ela os mais belos sonetos feitos por ele no momento. Não estava com ela, por isso não havia traição, mas seu desejo de ter algo o obrigava a conservar a imagem pura tida por ela dele.
Aceitar ir praquela rua havia sido o primeiro passo, tomado algumas semanas atrás. Ele caçara o templo para um amor secreto durante meses e quando finalmente o encontrou, conseguiu convencê-la. Foi o primeiro sinal percebido por ele de que, quem sabe, ela considerasse a infidelidade com ele- ou quem sabe, com as loucuras do amor, um namoro.
O sinal não era falso. Rafaella, uma das garotas mais certas da cidade, tão fiel aos seus princípios (como o da própria fidelidade), tão convicta de que Marcelito seria seu último namorado agora caia num tipo de amor diferente de praticamente todos tido por ela até ali. Era uma vontade de pular nos braços dele em um momento aleatório pela certeza absoluta de que seria segurada e abraçada, e aquele abraço era o necessário para estabilizar sua vida já toda definida pela vida de seus pais, determinados a nunca sair daquela cidade. Ela dava a mão como se não soubesse da intenção de Júlio em beijá-la dedo por dedo, centímetro por centímetro, satisfazendo-se assim de modo tão inocente…
Ninguém poderia saber. Em meio a todos, ela agia (diferentemente do seu namorado estúpido) para manter as aparências de ali haver um platonismo eterno- pois não havia uma sequer alma a desconhecer a evidente queda de Júlio por Rafaella, mas as mesmas almas nem suspeitavam da reciprocidade do sentimento. O próprio Marcelito estava ciente mas sua arrogância e prepotência o impediam de imaginar sua eterna fisgada fazendo-o corno (como ele fazia-a sem dó nem piedade). E foi por essa necessidade de anonimato, já imaginada por Júlio, que se encontrou uma pequena rua de casas abandonadas, perfeita para fazer-se uma fogueira na quinta-feira a noite, quando todos haviam de dormir para o dia seguinte (inclusive a menina, mas ela ignorou isso até 1 semana depois, após o amante ir embora, deixando-a com o mesmo sempre de costume). Mesmo numa cidade do tamanho do ovo, o amor era tanto e o desespero igualmente espantoso que Júlio fez da cidade uma metrópole, onde crimes são cometidos a luz do dia e no nariz de uma multidão sem que ninguém o veja. E esse crime estava sendo cometido em tal discrição a fazer até Rafaella esquecer onde morava e ser levada facilmente nas descrições de Júlio.
Ele falava de São Paulo. Contava da Rua dos Trilhos, que em sua simplicidade não tinha nada demais além dos antigos bondes de domingo e no resto da semana os trilhos descançando para mais uma volta ao passado longínquo, mas Júlio falava de andar por ali de bicicleta e cair, de pegar diversos ônibus- mas você não se perde com tantos ônibus? Ouço você falar de incontáveis só perto da sua casa…- para sair com amigos, ficantes, namoradas, de açaí (que mesmo ela nunca ter visto um na vida já tinha como sobremesa predileta, só pela delícia de ouví-lo contar). Também a contava sobre a Avenida Paulista, com toda sua imensidão horizontal- tantos estabelecimentos, a Livraria, os hippies vendendo miçangas a preços ridículos, os casais andando como se fosse lua de mel, a barulheira de megalópole- e vertical- os prédios de incontáveis andares, as torres de rádio a brilhar quando anoitecia, os enfeites de natal colocados para iluminar ainda mais um lugar que nunca conheceu ou havia de conhecer a noite. Júlio falava de levar Rafaella para a Livraria. Os olhos curiosos dela brilhavam sempre que ouviam ele mencionar um lugar tão impressionante: três andares, praticamente todos os livros desejáveis além de CD’s, DVD’s e Blu-ray’s, um café amigável a convidar os clientes a ler um pouco os livros recém-comprados. Ele a levaria ali, e eles sentariam no chão perto da sessão de nacionais, pois nada a agradava mais que poesia (principalmente quando ele a declamava) e ele leria para ela um livro inteiro de Manuel Bandeira.
Além disso também chamava atenção a Galeria. Ela gostava de tango e salsa (vê-la dançar foi um dos prazeres esquecidos por Júlio quando voltou para o Brasil), mas algo sobre um lugar tão diversificado como a Galeria do Rock sempre a convidou. Ela olhava para os anéis nos dedos dele (todos com um significado, mas nenhum de compromisso, o que tornava tudo mais possível, portanto mais complicado e palpável) e desejava alguns para ela, mas também um filtro dos sonhos, uma camiseta, um colar, qualquer coisa passível de compra naquele paraíso. Ele prometia a ela comprar tudo o que não pudesse se ela desejasse. Ele também a falava de ver o pôr-do-sol, mais bonito que qualquer um existente (não que ela conhecesse outro além do da sua varanda e o do Édem- apelido carinhoso da rua anônima), com os prédios enormes e antenas fazendo a sirueta de cidade perfeita, tal como era. As promessas nunca acabavam, ao contrário da vida útil daquele escape.
Quando viu, ela se encontrava abraçada de costas com Júlio, dando beijos carinhosos em suas mãos. Como ela se deixara atrair? Como havia sido seduzida a trair os princípios máximos de sua índole? Ela não tinha feito absolutamente nada, mas só o fato de estar ali, de ter um carinho tão profundo quanta a curiosidade de como seria beijá-lo já servia para pesar sua consciência. Ao mesmo tempo, porém, havia o peso da despedida. Ela podia ignorar e não consumar o fato, mas e depois ficaria o resto de sua vida imaginando como seria se… Se o que? Se eles ficassem, ali naquele momento? Quatro dias antes de ele voltar para sua terra natal e (muito provavelmente) nunca mais pisar em Fruta, faria tanta diferença assim?
Quando esta dúvida surgiu na cabeça de Rafaella, Júlio demonstrou quase um poder de leitura mental, pois já voltava a falar de como havia de levá-la com ele; afinal, ela mesma já tinha dito que nada a esperava ali além do destino de seus pais- viver parcialmente felizes numa cidade onde eles sempre seriam pastores (sua filha, a filha do pastor), seguir a rotina semanal de visitar os amigos (não só os mais próximos) até aos poucos estes morrerem e nunca mais conversarem sobre os antigos tempos de colégio e ensino médio, de besteiras feitas 40 anos atrás e nunca mais algo parecido tinha sido tentado. Júlio a oferencia algo a mais, oferecia um mundo diferente.
Infelizmente ambos não sabiam que parte do amor proibido é e sempre será a eterna promessa nunca cumprida.
Mesmo assim, com tanta culpa e tanta dúvida, Júlio conseguiu virá-la e encará-la. Olhava profundo nos olhos novamente, mas desta vez com menos admiração e mais cobrança. Ela sabia exatamente o porquê. Ela sabia as perguntas. A certeza desejada por ele, o desejo tido. As respostas haviam de ser categóricas: não. Ela não podia ficar com ele ali, não por falta de desejo, mas por excesso de princípios. Se ela não estivesse em um relacionamento, sem dúvida, mas ela pensou a frente, assim como ele pensou todo momento; não havia razão para terminar um relacionamento (mesmo que problemático) de 3 anos por um amor de alguns dias.
Não obstante, quando ele cobrou dela a certeza da reciprocidade, quando segurou a nuca dela e a trouxe tão perto que ela sentia seu rosto transpirar calor, quando falou como quem chora por dentro mas é firme como pedra por fora, ela não conseguiu. Valores são valores e podem ser trocados por alguns instantes para o prazer momentâneo- se ninguém viu, não aconteceu; se não aconteceu, não há culpa; se não há culpa, arrependimento não existe.
E ali, na rua abandonada eles se amaram por mais 4 dias, todos no mesmo horário seguindo a madrugada inteira, mas com um livro de poesia diferente por noite.
Na manhã na qual Júlio foi para Buenos Aires para pegar o avião para São Paulo, Rafaella perdeu uma aula para levá-lo na estação de ônibus. Ninguém nunca soube do caso dos dois de fato, mas presumiu-se uma amizade extremamente forte que a lembrança futura havia construído entre ambos. O ônibus já estava de partida quando Júlio beijou a amante de despedida e chorou. Ela manteve-se intacta, porém com os olhos avermelhados de falta de sono e vontade enorme de desabar, mas olhou para seu paulista e lhe agradeceu por todos os momentos espectaculares dados por ele. Ele agradeceu de volta, mas disse a ela palavras que seriam anotadas por ela, e relidas diversas vezes com o passar dos anos.
“Foge, Rafa. Esta cidade pode ser o seu mundo hoje- e que mundo bom- mas o que há lá fora é maior. É um mundo que te merece e você merece-o. Seu destino pode estar aqui, mas você pode levá-lo para passear em Buenos Aires ao menos uma vez e conhecer a cidade. Tenho certeza que assim como o meu está em São Paulo, o seu está lá. Adeus.”

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