Boas vivências

Boas vivências

Boas vivências

Toma outra dose, mandando tudo para dentro de si. Desce queimando, claro, mas o incômodo é outro. A sensação ali é extremamente familiar, quase monótona, pois é a experiência de sempre, independente do lugar onde está: achar o pequeno bar da região, ouvir a conversa dos bêbados locais e tornar-se um dos ébrios.

Eles discutem as novidades alto o suficiente para ele não ter de olhar disfarçado ou sequer fazer esforço. “Cê viu esses sumiço?” “Vi sim, mas era só estrangeiro, então menos mal” “Que será que acontece?!” “Num sei… já faiz muito tempo que acontece esse tipo de coisa” “Meu patrão, desce mais uma pra nóis!”

“Cidade praiana e pequena, não há muito o que se preocupar” pensa Aureliano. “Os viajantes devem encher o saco daqui e vazar.”

O bar é extremamente pequeno. Quatro mesas de plástico Skol, um balcão médio, com a capacidade para abrigar (talvez) 8 pessoas. A vista faz valer a pena, de frente para o pier. Pessoas passam na frente do estabelecimento e ignoram a presença deste, em parte pelo desconforto com tal nível do lugar, em parte pela estonteante beleza das águas.

Olha um pouco além e vê dois barcos navegando próximos. Não entende nada de navegação, mas aquilo é próximo demais para o porte dos veículos marinhos. Ele não consegue notar o fio vermelho descendo de um dos barcos ou que há conversa entre os capitães. Segue a linha provável do caminho com os olhos e resulta em um passeio de barco de uma hora e meia.

Não há detalhes do caminho (e de nada adiantaria, afinal, não conhece os mares dali), mas somente os horários: 13h, 15h, 17h e 19h. Olha seu relógio de bolso, e nele consta 16 horas e 39 minutos. Decide pegar o passeio das 17, mesmo levemente alcoolizado, nada mal seria um pouco de mar. Quando vai colocar o relógio em seu lugar, se pega olhando a ele.

Prateado nas bordas e aberto no meio, de tal forma a tornar visível toda a estrutura interna do dispositivo (aparentemente), protegida por uma camada de vidro. Guarda-o por diversos motivos. Era de seu avô, veterano de guerra, que apesar de nunca ter saído de casa com uma arma de fogo sequer, não ia nem à cozinha sem o tal objeto. Com um girar específico no marcador de tempo (como um cronômetro antigo), o relógio liberava clorofórmio em gás. Por isso ele era mais fundo que o necessário e extremamente pesado. Não poderia deixar acontecer algum acidente e o dono do relógio de bolso morrer.

Além disso, a tecnologia é o asco de Aureliano, e ninguém ousa contrariar seu nojo. Mas o questionamento de todos (incluindo ele próprio) sempre caiu no fato de ele não estar onde está. Ele está fisicamente no bar, mas ao invés de prestar atenção na própria bebida, presta na conversa atrás, e não em seu petisco, no lindo mar ou o próprio céu. Normalmente, culpa-se os tais smartphones por remover o humano de sua esfera, como explicava-se a condição do garoto? Não se explicava, pois com 20 anos, indo para os 4 cantos do mundo (com vida simples pras possibilidades tidas) ele ainda não vivia. Portanto, sem celular ou tablet para olhar as horas, recorria ao clássico relógio de bolso.

Leva consigo, além do relógio, uma faca, a carteira e as chaves da motocicleta. Tudo embalado em sacos impermeáveis- organização sempre será a maior atenção deste.

Olha para o dono do bar e pergunta a conta. Ouve o valor e não se questiona se ele é ou não absurdo para algumas doses de vodka barata daquele jeito; não por confiar na natureza do vendedor, mas por não lhe fazer falta 20 reais, ao passo que com eles, o dono poderia colocar a droga de uma mesa a mais.

Atravessa a rua cheia de areia, não permitindo-o checar se ela tem ou não asfaltamento. A moto ficou estacionada ao lado do bar, e pela pseudo-gorjeta dada, o dono do bar não deixaria ela ser roubada. Ao menos é assim que Aureliano pensa, e certo está. Para na calçada do meio da rua (usado para dividir vagas de carro de vias) e se apóia em um poste. Sente uma tontura forte batendo, e decide deixar o passeio para as 19 horas, afinal, seria o último do dia, possivelmente mais cheio de gente da sua idade e interessante.

Vai até o suposto porto do navio e pergunta para a mulher se poderia comprar lugar para o das 19. Ela o mede, de cima a baixo procurando traços de policial, mas Aureliano é relativamente magro, de chinelos, regata e olhar perdido de quem já não tem fé. Ela permite a compra, e ele supõe estar sendo observado para merecimento de ir no passeio. Coitado.

Compra o seu ingresso e é advertido a estar 19h naquele ponto, pois só então entrariam no barco, e 10 minutos depois iriam. A segunda suposição é de que a mulher, na verdade, estava flertando com ele. Coitado. Morena dos olhos castanhos, cabelo longo e olhar de desprezo, ele logo refutou sua idéia. Despede-se e promete chegar no horário, não perderia o passeio por nada.

Encaminha-se para a moto e olha novamente o horário. Já que seu hotel é na rua de cima, teria duas horas para melhorar sua cabeça e estar pronto para o passeio. Na verdade, o fazia mais pelo esforço de viver a vida de alguém que não ele- o último desejo de seus pais fora direcionado a ele viver a vida do melhor jeito, e a herança o permitiria fazê-lo.

Quando tira os olhos do relógio, vê uma moto vindo em sua direção, e diminui conforme chega mais próximo dele. O passageiro, sem capacete e munido de uma peixeira, coloca-a na barriga do ébrio e o manda passar o celular. Num meio reflexo dado por sua longa experiência em artes marciais, ele dá um leve tapa na faca, fazendo-a sair da linha de seu corpo, e com o cotovelo a derruba. Dá um soco no passageiro e empurra o motorista da moto, o derrubando e fazendo o veículo cair para o lado dos meliantes. Desesperados, abandonam o local rapidamente, sem sequer olhar para o rosto da possível vítima. Mesmo com reflexo reduzido, Aureliano ainda era extremamente habilidoso.

Com sua moto em mãos, faz uma curva para ir ao hotel, passando pela avenida da praia. Sempre olhando para frente e procurando a rua para entrar, perde toda a beleza do mar meio verde e meio azul, cheio de pequenas quebras brancas espumosas, fazendo um deliberado convite para dar um mergulho. Mas ele entra na 3a rua. Sobe ao quarto rapidamente e apaga no encostar da cabeça no travesseiro.


Abre os olhos numa calma absurda. O sol leve ainda bate, tornando o quarto morno sonolência, e não quente insônia. Pega o relógio do avô para ver o horário e se desespera: são 19h. Enfia os chinelos no pé e dirige com velocidade até o cais, voando até o lugar de encontro. Chega em 3 minutos, com o peito explodindo e visão turva do desespero.

Recebe olhares tortos da mulher e do capitão. Dá o ingresso à mulher meio trêmulo, característica advinda da explosão até o lugar. Ela recebe meio impaciente, mas ele não nota nem isso ou o leve corte na mão dela, não tão profundo, mas notável, muito menos a leve mancha vermelha no convés no qual pisaria em poucos segundos.

O barco é bem cuidado mas velho. Aureliano olha para a estibordo, à sua direita, e vê a figura contraditória  (em sua mente) de um pirata. Questiona o sentido de um símbolo da ilegalidade nas navegações para um serviço aprovado pelo governo.

Se o governo aprova ou não… é complexo. Talvez apoiasse os passeios, afinal, movimentavam a economia regional, davam um ar mais interessante à cidade. Mas a verdade é que não apoiaria caso soubesse de tudo. No fim, faz completo sentido o pirata no mastro.

Olha para os lugares disponíveis e escolhe o mais próximo da bóia; não é medroso, mas prevenido. O aviso de segurança é dado e, como nos aviões, ignorado por todos a bordo. As caipirinhas chamam a atenção de quase todos.

São aproximadamente 20 pessoas ali. Ouvindo as conversas, nota o padrão social dali: viajantes ricos e jovens. Sua mãe não ficaria mais orgulhosa, pois apesar de não está se misturando, estar ali é esforço suficiente.

A caipirinha de limão é tudo o que importa para ele. Coloca cada vez mais para dentro, sem notar a distância tomada da costa, o mar agitado e o céu preto. Todos já se organizam para o ataque em uns 30 minutos.

Aureliano começa a chorar. Não entende o motivo, não se pergunta também, acostumado a levar o mundo como ele é, simples ou complexo. Numa das muitas doses, que fizeram sua imagem para a tripulação bem frágil, ele tem um delírio.

– Em seu pseudo-sonho, Aureliano se vê numa das muitas das discussões com seu pai.Eu não quero pai. Não sirvo pra Medicina.

– Tudo bem. Direito então.

– Também não.

– Engenharia? Arquitetura? Contabilidade? Letras? Moda?

– Não pai, não! Para de enfiar faculdade pra minha goela.

– Não vou Aureliano. Mas você tem que achar algo para fazer. Você não pode passar o resto dos seus dias olhando para o teto de casa.

– Mas pai…

– Aureliano, já tem muito tempo que eu devia ter te falado isso. Mas filho, é o seguinte. O mundo funciona como uma noite gelada. Mais do que você conhece, de um jeito só possível pra cima do Canadá. Naquelas noites, temos poucas possibilidades.

“É mandatório acender a lareira. O fogo revitaliza tudo, e ai começa a vida de fato.

“Você vai olhar pela janela e ver neve. Branca e atraente, com os raios de luz da lua iluminando a trilha. As árvores resistirão aquela temperatura e melhor paisagem não haverá. A escolha será óbvia: ir até lá.

“Mas a cada passo que você der, sentirá seu suor congelando. O conforto do fogo pela falta de calor acaba, e você é largado a própria sorte. O questionamento é: voltar ao fogo ou sair ao frio?

“O problema não é um ou o outro, mas ficar no meio. Você não está no conforto ou na beleza, mas no terror da dúvida. O problema, Aureliano, é que você não sequer duvida. Em suma, você não vive. E está na hora de começar a viver.”

Não sabe quanto tempo passou naquela brisa, mas ao sair dela se determina a cumprir o conselho do pai. Só estar ali não bastava, quer viver. E que oportunidade de demonstrar essa ânsia, não?

Pois nesse momento começam os gritos no deck de cima. Aureliano olha a frente uma porta e se joga contra ela, afinal, não havia ninguém olhando ou naquele lugar. Sua respiração acelera, o peito bate mais forte: é a adrenalina.

No andar de cima, os marinheiros revelam sua verdadeira cara. Na verdade, forjam os passeios como forma de atrai vítimas para morte e roubo, como se fosse um conglomerado de psicopatas. E faziam agora o seu prazer, deixando sangue escorrer pelas bordas do navio (como o fio vermelho no casco), assustando Aureliano.

A tripulação é de cinco. Um veleja, os outros matam. Os gritos de cima pararam e a chuva ameaça, sem molhar, mas trovejando. Ele espera a passagem dos marinheiros e corre para o capitão, que, ao invés de gritar, tenta eliminá-lo sozinho.

Mas ele não conta com a faca de Aureliano. De primeira, o capitão morre, e o homem deixa o timão travado, para evitar maiores problemas. Escurece devagar e o clorofórmio passa a ser valioso.

O relógio é furado e atacado de cima para baixo, e quando segura, um psico morre inalando. Uma mulher inocente se joga ao mar, tentando fugir inutilmente, pois acaba morrendo, e os outros três vão em cima dele.

Assim, todo molhado de sangue que escorria, com duas mortes nas costas, vai Aureliano defender sua vida recém conquistada.

Um por um, com facadas, socos e empurrões para fora da embarcação, Aureliano mata todos. Não sorri. Não chora. Apenas olha ao alto e ouve o trovão final antes de cair a chuva.

Ela cai com força. Uma das maiores da época. O navio transborda, mas tudo o que sai dele não é água, mas sim correntes de sangue. Aureliano olha para cima, ciente de seus atos, mas feliz por estar sentindo o banho de alma que está sendo aquela chuva

Leave a Reply