Natureza cúmplice- As Crônicas de um Fotógrafo 

Natureza cúmplice- As Crônicas de um Fotógrafo 



Andando pela cidade, não encontro nada de muito interessante. Criei esse hobbie na adolescência: andar pelos lugares caçando histórias, como se a rua fosse a extensão da janela usada pela minha avó para saber da vida alheia. Só observava tudo, em silêncio cúmplice.
Já havia um contrato entre os moradores e eu. Ao início, achavam estranho um menino andando quieto, olhando tudo. Acanhavam-sem com medo do julgamento social da rua. Foram notando meu jeito quieto… paulatinamente, eu já não fazia parte do corpo social daquela comunidade. Era um acessório, um eterno expectador.  Os novos entravam no bairro, achavam ruim, má acabavam se acostumando.
Lembro-me da primeira fofoca escondida por mim: uma mãe fugira de casa. Deixara a filha a mercê do mundo durante 2 dias, mas ninguém notara. A única pessoa consciente daquilo era eu. Podia acabar ajudando a garota? Chamando a polícia? Claro. Mas nunca fiz. Nunca me pareceu importante.
O importante foi quando o bairro cresceu e virou comunidade. Certa vez, subindo as ruas, dei de cara com a casa de um moço alto, forte. Vi ele pegando a peixeira, apontando pra moça. Se entendi bem, ela falou algo como “Não precisa! Eu pago!”, e logo em seguida já vi a peixeira em cor vinho.  
O homem chegou em mim, por ver que eu assistira a tudo, e me puxou para dentro da casa. “Já tô sabendo dessa sua fita de autista, mas já te digo que se isso vazar, quem morre é você moleque.” Sai dali em desespero, mas quieto. Desta vez, eu realmente tinha virado um cúmplice. Meu crime era ser eu mesmo.
No fim, a verdade foi sempre essa. Mesmo agora, nesse parque, vivo uma vida de outros. Uma história dependente diretamente aos problemas alheios. Saí de casa com uma câmera, apesar de nunca agir por si só, impossibilitando o uso desta.
De repente aparece uma garotinha. Deve ter uns 8 anos. Parece moradora do bairro, apesar de nunca ter visto ela, pois está sem pais e muito feliz para o lugar onde está. Ela senta no banco esperando algo. Suponho ser algum responsável.
Ouço uma corredeira atrás de mim. Um menino, da mesma idade dela anda com as mãos atrás do corpo. Sorri grande, como travesso. O que será que guarda?
Conforme anda, vem o buquê de flores enorme em suas pequenas mãos. Ele olha para a garota, sem falar nada, e ela ri. Ele também, e alto. Nesse momento, levanto a camera rapidamente e bato a foto dessa cena. Ela pega o buquê e dá um beijinho em sua bochecha.
A foto representa muito para mim. Desejo ser exatamente como o menino.
Desejo ser atuante, não cúmplice. Ele demonstrou seu sentimento, seja lá qual for com um gesto lindo e pessoal. Não esperou receber ou quis ver alguém fazê-lo. Queria ter sido a pessoa a ajudar a menina abandonada, não esperar a mãe dela voltar.
Desejo ser inocente, como antes da noite em que vi o assassinato de uma mulher pelas mãos do traficante, removendo toda minha infância junto da vida da mulher. O garoto não teve a malícia de beijar a boca. Pelo contrário, se animou com a bochecha, já completamente vermelha.

Talvez, quem sabe, aquele moleque devia ser eu.

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