Tem tema mais geral, maior (em relação aos Mini-textos.

Insônia

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Escrevo pelas paredes os versos cuja recitação foi falha a você. Eles me torturam. Escravizam minha mente, forçando-me a não pensar em outra pessoa, situação. Não há espaço nem para sonhos, estudos ou sequer leituras. Tudo é pesadelo.
Qual a tinta dessa (anti)poesia? Não há definição deste vermelho. Pode ser meu sangue ou o teu, nunca saberemos. Os cortes feitos em um são sentidos no outro. Que lindo é o amor… partilha do pão e vinho; no caso do corpo e do sangue.
Agora entendo a não-diferenciação da tinta. Ela é uma só, removida de um só local, extraída em uma só dor. Seria a briga, então, uma auto-mutilação voluntária? O “tempo” uma dupla-personalidade?
Te culpo sim pela loucura trazida pela privação da necessidade humana mais irracional- tu tirastes de mim o amor e como consequência, se foi meu sono. Junto do sono, esvai-se a vida, deixando-me sem vitalidade alguma. Já não conheço visão se não a turva; sensação visual que não a ardente; gosto de não o salgado de minhas lágrimas e talvez o de sangue arrancado dos lábios perante o desespero.
Sou obrigado por este sentimento a fechar-me em mim. Sou todo escuro. Sou todo buraco. Gauche de mim mesmo, sinto peso nenhum comigo se não o da sua perda, e ele é suficiente para me jogar no chão.
Não é suficiente para desligar minha cabeça.
Não é suficiente para cansar.
É o que basta para me enlouquecer.

-R.C.

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Natureza cúmplice- As Crônicas de um Fotógrafo 

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  • Tempo de leitura:4 minutos de leitura



Andando pela cidade, não encontro nada de muito interessante. Criei esse hobbie na adolescência: andar pelos lugares caçando histórias, como se a rua fosse a extensão da janela usada pela minha avó para saber da vida alheia. Só observava tudo, em silêncio cúmplice.
Já havia um contrato entre os moradores e eu. Ao início, achavam estranho um menino andando quieto, olhando tudo. Acanhavam-sem com medo do julgamento social da rua. Foram notando meu jeito quieto… paulatinamente, eu já não fazia parte do corpo social daquela comunidade. Era um acessório, um eterno expectador.  Os novos entravam no bairro, achavam ruim, má acabavam se acostumando.
Lembro-me da primeira fofoca escondida por mim: uma mãe fugira de casa. Deixara a filha a mercê do mundo durante 2 dias, mas ninguém notara. A única pessoa consciente daquilo era eu. Podia acabar ajudando a garota? Chamando a polícia? Claro. Mas nunca fiz. Nunca me pareceu importante.
O importante foi quando o bairro cresceu e virou comunidade. Certa vez, subindo as ruas, dei de cara com a casa de um moço alto, forte. Vi ele pegando a peixeira, apontando pra moça. Se entendi bem, ela falou algo como “Não precisa! Eu pago!”, e logo em seguida já vi a peixeira em cor vinho.  
O homem chegou em mim, por ver que eu assistira a tudo, e me puxou para dentro da casa. “Já tô sabendo dessa sua fita de autista, mas já te digo que se isso vazar, quem morre é você moleque.” Sai dali em desespero, mas quieto. Desta vez, eu realmente tinha virado um cúmplice. Meu crime era ser eu mesmo.
No fim, a verdade foi sempre essa. Mesmo agora, nesse parque, vivo uma vida de outros. Uma história dependente diretamente aos problemas alheios. Saí de casa com uma câmera, apesar de nunca agir por si só, impossibilitando o uso desta.
De repente aparece uma garotinha. Deve ter uns 8 anos. Parece moradora do bairro, apesar de nunca ter visto ela, pois está sem pais e muito feliz para o lugar onde está. Ela senta no banco esperando algo. Suponho ser algum responsável.
Ouço uma corredeira atrás de mim. Um menino, da mesma idade dela anda com as mãos atrás do corpo. Sorri grande, como travesso. O que será que guarda?
Conforme anda, vem o buquê de flores enorme em suas pequenas mãos. Ele olha para a garota, sem falar nada, e ela ri. Ele também, e alto. Nesse momento, levanto a camera rapidamente e bato a foto dessa cena. Ela pega o buquê e dá um beijinho em sua bochecha.
A foto representa muito para mim. Desejo ser exatamente como o menino.
Desejo ser atuante, não cúmplice. Ele demonstrou seu sentimento, seja lá qual for com um gesto lindo e pessoal. Não esperou receber ou quis ver alguém fazê-lo. Queria ter sido a pessoa a ajudar a menina abandonada, não esperar a mãe dela voltar.
Desejo ser inocente, como antes da noite em que vi o assassinato de uma mulher pelas mãos do traficante, removendo toda minha infância junto da vida da mulher. O garoto não teve a malícia de beijar a boca. Pelo contrário, se animou com a bochecha, já completamente vermelha.

Talvez, quem sabe, aquele moleque devia ser eu.

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Confinamento- As Crônicas de um Fotógrafo

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  • Tempo de leitura:10 minutos de leitura

O som do sinal interrompe minha fala. Imediatamente, pode ser ouvido o som de  livros sendo fechados sem vontade alguma, quase expulsando o interlocutor de seu espaço; no caso, eu sou ele, me deixando em uma situação extremamente desconfortável. Mesmo assim, não deixo de dar o aviso.
-Não se esqueçam dos resumos para semana que vem… as provas chegam e quero todos fora da escola ano que vem!

Deixo a sala de aula e imediatamente trombo Lili, a professora de matemática.

-Bom dia Rafa, como estamos?

-Muito bem! Agora vou pra casa, última aula. Vai pra onde?

-Acho que para o clube de fotografia. Você deveria tentar um dia.

-Ah, não é minha cara. Curto mais as coisas concretas, entende?

-Estranho, para alguém que cursou história… ela não é nem um pouco concreta.

-Suponho que é compensação, hahaha. Mas valeu o convite.

Gosto de Lili. Após ingressar esse Colégio (cerca de 1 ano e meio atrás) nos aproximamos muito, por não termos o mínimo interesse de participar do grupo mal-falante dos alunos.

Enquanto caminho em direção à garagem, observo o corredor. Colunas baixas, com um pé-direito de mais ou menos 4 metros; sinto muitas vezes que, ao pular, posso bater a cabeça, ou o medo de, do nada, o teto desabar. As paredes são cinza, as portas de madeira extremamente pesada. É fácil perceber a (quase) inexistência de janelas, pois elas se concentram nas salas de aula, e mesmo assim, são repletas de grades de ferro. Após comparações nem tão exageradas, compreendo o ódio dos alunos pela escola. Abro o portão de ferro (o único da escola) e entro na garagem de concreto, e adentro o carro.

Pequeno, com somente 2 lugares e o porta-malas, ele não convida ninguém pretendente de uma família. Oprime essas ideias facilmente, algo nem tão bom, mas o preço valeu. Família é uma idéia que permanece na minha cabeça em todo o percurso a casa. Uma mulher, filhos… mal consigo imaginar como seria, mas vejo uma pessoa: Lili.

Nunca me apaixonei loucamente, mas ela é o mais próximo desse sentimento que tenho. Confio nela, é uma amiga razoavelmente próxima e temos tempo extra-trabalho muito bom juntos. Claro, tenho meu grupo de amigos da faculdade e saímos para botequins e boates, mas o aperto de estar naqueles  lugares abafados e cheios de gente desconhecida não é nem perto de aliviante.

Esse pensamentos já permeiam minha mente a semanas. Já pensei em uma ou duas situações para tratar disso com ela, mas fico incerto e coisas do tipo. Não sinto aquele tesão em ir fazer isso, mas é uma constante, pois nada me deixa dessa maneira.

A buzina arranca na minha orelha. Quais me envolvi em um acidente, e isso move minha cabeça para fora da temática e coloca-a no trânsito. Mesmo num engarrafamento, fico focado oda frente e o de trás, com medo de uma retaliação pelo quase incidente. 30 minutos fico nessa avenida, mas chego no meu apartamento.

20m2. É esse o tamanho da moradia em que vivo. Suficiente para viver sozinho, tudo bem compacto. Sempre economizei muito, apesar de não haver destino para esse dinheiro. Suponho que seja instinto preventor… não compro nada além do necessário. Abro o armário e como um jantar, decido em mente que amanhã falaria com Lili.

Vou na gaveta, pego a câmera fotográfica  guardada para a tal ocasião  (ou só um presente), uma garrafa de Jack Daniels guardada para emergências 3 coloco na minha mochila. Soco umas roupas para esconder ambos; um shorts, uma calça jeans, algumas comidas… e não é possível mais notar a existência de ambos ou da arma branca que guardo.

Coloco a mala no sofá e caminha pra cama. Com roubo de trabalho mesmo, me jogo e durmo profundamente.

O alarme são altíssimo no ouvido, mas estranho o toque. Pego o telefone e vê que estou 30 minutos atrasado. Vou perder a 1a aula. Troco rapidamente de camiseta, passo desodorante e perfume, tomo meu café e saio após escovar os dentes.

Um acidente para a rua e sou obrigado a esperar; agora fica impossível dar a 1a, talvez até a 2a aula.  Ligo para o diretor avisando meu atraso. Após ouvir muitas, desligo e faço meu melhor, chego na escola a tempo de pegar a 3a aula.

Quando esta termina, vou para o intervalo, e sento ao lado de Lili.

-Bom dia  

-Bom… soube que atrasou hoje.

-Sim… infelizmente algo aconteceu e meu despertador não tocou.

-Que pena. Bem, acho que já vou indo para a sala então, tem matéria atrasada e tudo mais no E.

-Espera! Queria te perguntar… o que acha de sair pra jantar um dia desses?

-Jantar?

-Sim, qualquer lugar.

-Rafa, pra que?

-Ah, acho que a gente tem uma química e tal, bons amigos…

-Não.

-Não? Por que?

-Olha, muita coisa. 1o porque é do trabalho. 2o porque não somos tão amigos assim… não tivemos conversas muito profundas nesses ano e meio, né?! 3o porque você é muito morto Rafael.

-Morto?

-É. Você não vive, só está aqui. Você simplesmente se enjaulou na sua vida, nessa escola. Vive uma vida completamente vazia e eu não quero ir junto nessa.  Quero continuar com meus encontros e ambições, não estagnar num apartamento de solteiro, carro de solteiro e vida solitária com meus 25 anos. Desculpa, mas não. Agora, tenho que ir, e o Diretor quer falar contigo.

As palavras dela me atingem como socos. Confinado na minha cabeça, talvez nunca tenha olhado que ela não é bem a mais confiável. que talvez aquela escola seja uma prisão, não uma instituição de ensino. Que esse ambi engr fechado é repugnante para mim. Repentinamente, abandono as esperanças nesse modelo vivido.

O diretor chega perto e eu o mando  ao inferno. Na hora, fica explícita  minha demissão. Pego minha mochila, entro no carro. Lembro de uma estrada distante e por impulso, sigo na direção dela.

Num posto sento para decidir um plano e começo a ouvir um papo de dois homens. Um reclama de sua moto, inútil para a viagem planejada, pois vai com mala. Me meto na conversa fazendo uma proposta de troca; o carrp e pela moto. Pela velocidade e por saber qual carro era, decide aceitar. Após dar e receber as chaves, vou ao banheiro, me troco, ficando de jeans e blusa devido ao vento que rasga. O homem avisa que a moto está ruim, mas dirigível. Não me importo, só quero algo diferente.

Saio do posto em alta velocidade, seguindo em direção às serras mais vazias que consigo imaginar. Paro algumas vezes no percurso, mas nada demais, somente o motor falhando um pouco. Cai a noite e durmo num motel, entrando quando já não tenho energia para andar. Saio de lá 5h da manhã, para seguir estrada, com energia e alimento comprado.

O motor continua falhando e não tenho onde chegar, então, paro no acostamento. Passa pouco da hora do almoço, então, não me preocupo com alguém aparecer e eu sofrer ameaças, apesar de conservar a arma perto, na mochila. Sento na mureta ao meu lado; quando olho para baixo, vem a sensação de vertigem fortíssima da cabeça ao pé, pois abaixo de mim há um rio com forte correnteza, uma morte certa. Mas que importa? O que é a vida se não uma sequência de fatos aleatórios, um resultante do outro, com a constante eminência do final? Nesse momento, deitado neste muro com a garrafa ao meu lado, não estou mais perto da morte do que sentado no chão ou em casa na cama. A diferença mora na vista, pois o céu incrivelmente azul, com nuvens extremamente brancas me animam, e a correnteza faz um som de queda d’Água agradável aos ouvidos.Olho para o lado e vejo ali uma pequena estrada, mais íngrime, porém descendo até a margem. As devidas subsequentes fazem parecer um pequeno desenho, uma seguida da outra, e pego a câmera para registrar essa linda paisagem.

Este é o verdadeiro sentido para a vida, suponho eu. Do que adianta uma vida em locais confinados se a Graça de tudo está na paisagem?

Fim

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Esculpindo

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  • Tempo de leitura:3 minutos de leitura

Meus dedos deslizo em suas cachoeiras confusas… o que são? Decifrá-las é um passatempo e admirá-las quase obrigação inata. Permanecem dúvidas bobas em meio a cheiros conhecidos e saudosos, atração paradoxal nos cachos… são eles negros como teus olhos ou claros como a luz de tua alma?

Aí encontramos mais uma contradição. Se os olhos são a entrada da alma, como os seus são tão escuros? Não vê-se a tua leveza na cor, mas no jeito; a íris é suave e amorosa, acolhendo a minha menina carinhosamente, apesar de ela escorregar para o vermelho mais abaixo.

A cor é linda e vital. Mostra muito do que tu és para mim: o sangue corrente no meu corpo tem aquela cor. O sabor é diferente, mas atrai tal como se eu fosse um vampiro, alimentando-me de seus beijos, sendo iluminado pela tua cor, metabolizando teu perfume.

Como é penetrante este; em cada curva, cada pequena pele tem seus rastros. Isto pois não é essência artificial, mas natural do teu corpo.

Ah, como deslizo em cada parte… no peito acolhedor, o braço confiável e cintura feita a medida. Michelangelo tentava imaginar tal perfeição, mas era falho. Seu Davi pode ser modelo masculino, mas tu és o feminino, demonstrado no teu caminhar.  Teus passos são inocentes e soltos. Um rebolado leve pode ser percebido ao analisar de perto… mas fica exaltado quando vê uma dança. Aí perde tanto a imagem de criança, mas isso é ressaltado no amplo controle tido. Manipula para pisar e não sofrê-lo.

O passo é leve como o espírito, e a bondade na personalidade  agravante deste. Caminha até mim devagar, joga teu corpo no meu e deixa viver nossa vida. Ela será longa e bela, cheia de arrependimentos e risadas, acima de tudo por termos almas conectadas e compreendidas por si, assim como os corpos se entendem com facilidade. 

 

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No país das correntes

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  • Tempo de leitura:8 minutos de leitura

O Branco da Luz entrava por meus olhos lúcidos. Quem esquecera de fechar as cortinas? Não tive idéia do porquê de eu (possivelmente) teria feito isso. Não me incomodava, dentre muitas das coisas estranhas a minha volta, com a incompreensão do presente. Era preferível vivê-lo. É doce a sensação de acordar e não ter ideia de como parou ali. Simplesmente descer escadas.
Com a mão apoiando, segurei devagar e fui descendo,  saboreando cada passo dado. Ao fim da nem tão longa escadaria, senti cheiro de ovos. Meu peito doeu instantaneamente ao contato com o odor. Ignorei, apesar da intensidade, e sentei mesa. Pulei o café, fui direto ao almoço.
– Alicia querida… tudo bom?- Sentia a apreensão na voz de minha mãe
-Sim mãe… pode fazer um pra mim?
-Claro filha.
Por algum motivo, não conseguia identificar o elemento estranho na situação. A mesa suja de giz (natural, meus pais são professores), a cadeira vazia… era isso. Nem meu irmão não estava sentado, muito menos meu pai. Indaguei isso em voz alta, e fui respondida com um prato de ovos na mesa e uma rápida saída da sala, com o contato visual extremamente evitado pela parte dela.
Nunca tive uma preferência por companhias, todas são dispensáveis e inúteis, inclusive a de minha família. Já a muito eu era tratada como uma excluída, mesmo sem motivos aparentes, e minha rejeição pela sociedade era proporcional a exclusão por ela produzida. A refeição seguiu calma e lenta, terminei-a com apetite saciado.
Fui ao meu quarto para fazer a arrumação. Olhei os pôsteres; tanto trabalho para conseguir cada um deles, mas tão fácil sua perda, um rasgãozinho bastava para eu eliminar algum da parede. Seria meu perfeccionismo uma maneira de me distrair dos problemas sociais? Não lembrava de onde vinham os problemas, então, não havia resposta. Notei em um estrategicamente colocado para dividir meu quarto e do meu irmão- havia um pequeno furo na parede, suficiente para olhar e ouvir o do lado- e vi um borrão, trazendo a necessidade de  tirá-lo dali.
Ao removê-lo, vei meus pais e meu irmão conversando, em tom extremamente baixo, quase contando segredos. Tentei ler os lábios, mas não consegui. Olho um pouco ao lado e vejo mais um pouco de giz no buraco, apesar de não haver contato dos meus pais com aquela fissura. A última coisa que me lembro foi um grito seguido da palavra louca, trazendo um sentimento de desespero e uma longa respiração.

  • ●●

Dessa vez era escuro. Não tive ideia de onde estava. Meu quarto não era, pois eu repousava no chão frio e duro. Também não minha casa, o cheiro era muito estranho para isso e minha casa cheia nojento diferente. Aos poucos, eu voltei aos sentidos, sem a menor idéia do porquê estava ali. Essa memória não vinha, então assumi ser um desmaio. Ouvi uma voz conhecida, parecida com a de um colega de escola.
Foi super amigável comigo, quase inocente mas com um quê aproveitador. Ajudou-me a levantar, mas minha cabeça doía muito, tornando o raciocínio impossível. Passou a mão no meu corpo inteiro, tateia muito além que até um policial iria. Perguntou a mim se eu ainda tinha alguma coisa.
Supus o assunto ser planos, e contei a ele que não. Após isso, sou levada por ele até seu carro, onde ele dirigiu até alguma balada. Entramos lá facilmente.
A entrada é forte em minha memória; grandes quantidades de sacos em mãos de pessoas aleatórias, muita fumaça no ambiente e música abafando todos os outros sons. Vou dançar com o amigo, completamente chapado.
A partir daí, as memórias ficam mais fracas… não consigo lembrar muita coisa. Uma mesa suja, muitos cartões de crédito. Risadas altas. Mas, além de um beijo quente e pesado da mesma pessoa que fala, somente uma frase simples: Ela deve ser doente!

  • ●●

Um esfregão me acordou desta vez. A moça indelicadamente me mandou sair do local, e eu saio tropeçando. Negra, aparentemente velha (pela semi-calvície), extremamente rude comigo; mas segui suas ordens. Não tinha idéia de quando desmaiara, mas olhei acima e notei que o clube não era o mesmo do qual me lembrava.
Olhei algumas ruas, vagando sem destino ou pretensão e identifiquei estar na vizinhança de Chapa, um antigo amigo. Através de perguntas a desconhecidos, subindo e descendo a mesma rua, encontrei o local. Apareci em sua casa, em estado degradante, e pedi só para ser levada para casa.
Chapa perguntou sobre meu rosto, vermelho, e culpei  o maldito esfregão e a faxineira. Senti rosto entupido, suspeitando uma gripe forte, o nariz extremamente fechado para inspirar e expirar. Quando tocou meu braço, Chapa puxou minhas mangas acidentalmente. A dor causada por isso veio de duas direções: a psicológica, de ver linhas retilíneas no pulso as quais seguiam direções que não as da veia, sem razão aparente; e a física pelo atrito da roupa com o braço fazia um leve sangramento, denunciando o quão recente é o incidente.
Na hora, ligou para meus pais, e tudo corria relativamente bem, mas o maior problema foi a fala, desesperada, me tratando como louca.
-Ela não tem a menor ideia do que está acontecendo, dona. Alicia já perdeu a cabeça.

  • ●●

Lembro cenas após isso.
A ambulância me levando mas me sedando por algum motivo, com seguranças me prendendo à cadeira. Olhei para o espelho do teto e vi meus olhos vermelhos sangue, minha face roxa como se eu tivesse sofrido uma asficcia. Mesmo assim, não deixei de flagrar um sorriso enorme e desesperado de quem sente falta de algo.
O médico estranho me visitando dia sim, dia não. Sempre perguntando de meu apetite, mantendo uma distância sem sentido algum. Por que ele fazia isso?
Minha família me abandonando.
Lembro de ser trazida pra cá, numa cadeira de força, meus pais assinando um contrato. Lembro dos homens falarem para mim que eu estava perdida. Lembro de socar a parede de concreto extremamente raivosa por motivos desconhecidos por mim, nesse momento.
Com algemas fortes e sala branca, não sabia o porquê estava aqui. Só comia, olhava, pensava. Aqui, não dava pra socar a parede, ela é muito macia. Não tenho idéia de quanto tempo se passou. Aí o senhor veio e entrou na sala, colocou uma mesa.
-Agora sabe o porquê está nessa clínica, Alicia?
-Não.
-Agora sabe o porquê está nessa clínica, Alicia?
-Não.

-Responda a verdade.

 
Com um sorriso enorme e desesperado, olhos saltados, certos da resposta, falo:
-Todos ouvem vozes na minha cabeça;
O agente de preto pega um saco transparente com algo Branco dentro e joga com força na mesa.
-Não! Você também ouve?!
-Alicia, só faltam vozes na sua cabeça.

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Arquitetura (a)temporal

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O tempo tudo desgasta. Sem interferências externas à natureza, qualquer coisa cai.
As colunas sustentadoras, ao início de aparência invencível com seu concreto e cor alva, só necessitam de alguns meses para os primeiros sinais: manchas poluindo seu visual. Dê alguns anos e pedaços caem ao chão, fazendo rachaduras. Não é necessário falar que um tempo passará, e a coluna deixará de cumprir sua função.
O azulejo quebra com a queda do concreto. Mas, será que além do físico, ele já não está destruído? Ora, a pedra fora a primeira coisa a tocá-lo em anos… e não é esta sua função? O chão já não exerce sua função de apoio. Milênios passarão e pés nunca o tocariam. A dança não ocupou-o mais e a música, portanto, não chega nas paredes em ruína (as quais não cumprem suas funções de barrar sons).
Nas paredes só sobram os pregos de ferro já tomados pela ferrugem, quadros desbotados, uma cruz de madeira já devorada pelos insetos, prateleiras arruinadas pelo tempo. A função de acomodar enfeites já não existe e a desfeita com peculiaridades do lugar é vista pelo mundo afora. Ventos são sentidos com intensidade- sejam eles quentes ou gelados. A chuva entra por todos os lados, inclusive por cima, com a falência do teto.
A cobertura já não existe ou faz sentido. Sem colunas firmes, paredes silenciosas e chão acolhedor, o teto não precisa cobrir nada é muito menos ter apoio. A habitabilidade é impossível e o tempo implacável.
Note que, sem mudança, essa tendência é certeira. Acontecerá, goste o mundo ou não pois construções ruem.
Assim são relações. Necessitam de cuidados para serem estáveis em si, sentidas intensamente, firmes nelas mesmas e (o melhor) cuidado por ambos. O tempo estraga.
Mas, sabe como é né?
Contigo, me sinto em casa.

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Indução

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  • Tempo de leitura:2 minutos de leitura

É longa a caminhada pretendida e pretensiosa planejada contigo. Mas assim é a vida; só podemos escolher com quem vivê-la, pois esta é enorme e cheia de pequeninas ramificações, e sua companhia neste labirinto é crucial como oxigênio.

Crucial não para os pulmões que dão a vida, mas ao fogo aquecedor de uma relação, dependente de alguém tal como um cheirador deseja pó, com a linda diferença do local de ação da química: um no cérebro, tornando-o escravo forçado, outro no coração, fazendo do Senhor escravo, e do Escravo senhor. Quem dera os amantes tivessem vício um pelo outro… tornaria tudo muito simples: remova a dose durante um período e gradualmente o paciente não desejará mais.

Um casal não funciona assim, pois, quanto menor a dose, maior o desejo, e este só cresce com o tempo. O caminho inverso é igualmente falho, pois a maior dose possível só causará maior dependência, uma relação paradoxal.

Assim deve ser o relacionamento. Um paradoxo indecifrável, onde a única coisa compreendida por ambas partes é o intenso sentimento de união e confiança, mesmo desconhecidas as origens,  pois estas não importam.

O importante é estar “junto”  

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Concepção extraordinária 

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Certa vez, trombei com uma mulher quando estava no ônibus e sentei ao seu lado. Não saía do celular em momento algum. Olhava, digitava, pensava, mas nunca tirava os olhos do telefone. Pelas risadinhas dadas, caras e bocas feitas, deduzi rapidamente que se tratavam de conversas amorosas.
Com toda minha cara-de-pau, comecei um papo com a mulher. Perguntei, obviamente, qual o conteúdo da conversa tão engraçada.
– Hahaha… tô só falando com os contatinhos.
Achei estranho como ela chamou aquilo… não sou muito acostumado com o jeito de falar dela, mas deduzi se tratar dos garotos e segui a conversa.
-Nossa, são muitos então? Quantos?
Ela começou a me mostrar:Pedro-touro,João- peixes, Gui- Áries. João- Virgem. Isso me surpreendeu e perguntei a ela o sentido dos nomes ao lado. Será que eram tantos que ela tinha de fazer um detalhamento desse tipo?
Mas não. Aparentemente, ela sabia quem era quem; aquilo eram as notas dos signos de cada um. Estranhei, questionando a crença dela no zodíaco, obtendo, surpreendentemente, uma resposta negativa. “Acreditar, não acredito, mas eu sou de Gêmeos e Aquário… nem vai dar certo. Gostei de um certa vez, mas Áries e Gêmeos só da problema…” Por não acreditar, deixei de lado e segui o papo. Notei que em todos, religiosamente, a loira (Bruna) colocava o signo ao lado do nome. Conversa vai, conversa vem e ela decidiu pegar meu telefone.
Passei meu número, que foi anotado com o contato constituído pelo meu nome e um traço. Discretamente, perguntou qual era meu sol no zodíaco. Eu, interessado-Bruna era bem bonita- rapidamente repassei mentalmente a conversa, lembrando das características dos signos e tudo mais… e ela não falou nada mal de Capricórnio. Tentei me passar por este.
Não adiantou. Ela, bonachona, declarou já saber que eu era de Peixes desde o início da conversa (apesar de ser virginiano, deixei passar). Mesmo com toda a presunção dela, peixes é bem diferente das minhas características.
Ela disse que conversara todo o tempo notando em como eu era pisciano e confuso. Sai do ônibus satisfeito pelo papo, encantado pela crença forte dela pelo zodíaco, mesmo não acreditando.
Ah! Esse povo convencido de que toda a vida de alguém é determinada pelo momento da concepção… geração de olhar ao céu procurando explicações para ações de agora. Mais importa o berço em cima das atitudes de um indivíduo, menospreza-se o interior pela crença no exterior. 

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A cleptomania- As crônicas de um fotógrafo

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  • Tempo de leitura:12 minutos de leitura

Fotógrafa- Petra Collins

O carro treme. Não deveria, mas o modelo antigo e a falta de cuidado de Jonas fizeram-no ficar completamente perigoso. Dá-se a partida, todos já estamos prontos. De praxe, já estamos em nossos lugares praticamente pré-definidos.
Sendo o dono,Jonas não confia em ninguém além de si (e Carol, após 1 ou 2 shots de Cuervo) para dirigir, ocupando, naturalmente, o banco do motorista. Por conhecer toda a São Paulo desde quase feto, fico no passageiro, direcionando o caminho para seja lá onde é o destino. Carol, minha companheira de quarto na república, (além de backup para motorista) divide o banco de trás com Vic e Nando, e, na maioria das vezes, decide qual será o programa da noite. Vic chama as outras pessoas, que regularmente comparecem aos encontros, mas o grupo dos 5 sempre está junto. Nando é o cara das bebidas, fumos e tudo mais, apesar de ter sido o último do grupo a fazer tudo aquilo.
Hoje, vamos a um bar chamado Zeppelins. Pequeno, elegante pelo tema tão apreciado por todos nós, o Rock, permissivo com arguilés. Se tornou um destino frequente do grupo nos últimos tempos.
Chegamos ansiosos pela noite, saindo do carro rapidamente, parte por ansiedade, parte por medo do veículo acabado.
– Vocês são uns ingratos. Eu vou na casa de todo mundo, busco, dirijo, e vocês menosprezam o Larry.
– Tem razão Jonas. Melhor a gente tratá-lo melhor, vai que resolve quebrar na volta…- Nando responde, quase como se estivesse aguardando algum comentário. As piadas continuam sendo feitas, um aquecimento para a noite.
Permaneço quieto. Tenso com a faculdade e situações familiares, simplesmente fico olhando a interação, feliz por estar ali ao menos tentando me distrair. Todos sabem do meu estranhamento, mas tem noção do que deve ser feito. Olhando em volta , meus olhos vão ao encontro de um homem alto, com cabelo grande e grisalho, preso num coque, deixando uma imagem neutra.
– Júlio!
– E aí Zack! Como estamos?
– Muito bem, viemos  passar a noite por aqui. Muito movimento hoje?
– Pequeno, mas vai crescer. Chamamos umas bandas pra tocar hoje, vai ser uma loucura… fica esperto em moleque!
– Relaxa, vou ficar bem hoje!
– Até parece. Bem, vou lá pegar uma cerveja, quer o de sempre?
– Uhum, pode pedir pra trazer uma rodada normal enquanto não sentamos.
– Então seria 1 Sobi com 1⁄3 Jack, 3 Corona com limão e o Blood?
– Isso mesmo. Valeu, Júlio.
Olho pro lado, notando nos acontecimentos simultâneos a essa conversa com meu velho conhecido. Nando já está em cima de uma garota aleatória; Vic e Jonas falam de literatura ou algo do tipo (posso jurar que ouvi o termo Kafkaniano) e Carol observa atentamente a mesa ao lado.
Pode ser observado um grupo de 8 pessoas, todos homens. Todos tomam cerveja barata, do tipo que Júlio sempre tentou remover do cardápio de bebidas, mas a natureza do público varia muito, tornando assim impossível essa possibilidade. Há alguns litros ali, denunciando uma expectativa de noite longa e uma disposição clara para gastar dinheiro na maior quantia de álcool possível. Conheço aquele olhar. É o olhar de quem está muito interessada em algo.
Qualquer um, de primeira, ao tentar decifrar esse momento, falaria de interesse sexual profundo dela por algum deles. Sua pupila está dilatada, seus lábios rosa secaram e sua respiração é quase manual de tão profunda. Quase acertaria neste palpite, exceto no tipo de interesse e o objeto de interesse.
Vou até ela, seguro seu braço levemente e puxo seu olhar ao meu. Ela entendeu a mensagem. Dá um sorriso travesso, como criança aprontando escondido.
O momento é atrapalhado quando alguém me empurra, fazendo assim eu cair em cima de minha amiga. Olho agitado para trás, pronto para começar uma confusão quando vejo Nando e a tal garota se agarrando. Ele olha pra mim em tom de desculpas, mas continua com a garota. Seus olhos castanhos são doces e calmos, parecidos com os de um surfista olhando uma boa onda.
Desvio deles e sento com Jonas e Vic. Nesse momento, o garçom traz as bebidas, dá meu Crovral (nome dado por mim ao meu drink predileto) e as cervejas na minha frente, deixa a de Nando de lado e entrega o Blood para Carol, que se aloca ao meu lado. Dou um toque em Jonas: é o momento perfeito para o Anúbis.
Vamos até o carro. No porta-malas pegamos uma mala preta velha, porém conservada. Junto por acaso, vejo minha velha câmera e pego-a, para alguma diversão. Entramos novamente no bar, e em nossa mesa é retirado o tampão do meio, revelando uma tomada, uma torneira e espaço vazio. Tiramos a peça da mala. Ele é grande, bate quase no meu peito. Seu vaso é totalmente preto, com detalhes talhados por relevo no formato de um dragão. O corpo é metálico, respiro de dado vermelho elegante. O rosh é de cerâmica, também preto, mas com linhas irregulares saindo do centro da cabeça. A mangueira é de veludo preto igual, porém, a pateira e o aveludado são igualmente brancos. Quando terminamos de montar, acender o carvão, preparar a essência e tudo, iniciamos a sessão.
Não propositalmente, todo o bar para afim de ver a preparação do nosso Anúbis (apesar de este não ser o modelo, o nome simbólico ficou) uma obra de arte greco-egípcia ou árabe. Chamamos tanta atenção que, nesse momento, Júlio bota a primeira banda no palco, para aproveitar a união feita.
É uma boa música, como de se esperar de uma escolha feita por alguém tão experiente quanto meu amigo. O show anima o público presente no Zeppelins e atrai ainda mais galeras.
Após 3 horas de música (e 2 sessões perfeitas) acabam os shows e o panorama é de mistura total. Nando e Luana (seria esse o nome dela, aparentemente) vão para o carro e agora praticamente todos têm uma companhia amorosa. Praticamente, pois eu e Carol, apesar de juntos, não somos um casal. A situação muda quando, repentinamente,uma loira senta na minha frente. Pergunta da câmera em meu colo, e conta do curso de fotografia que está fazendo e… eu realmente não me importo. Mas sigo com a conversa, regularmente parando para olhar Carol (normalmente quando o clima fica propenso ao beijo; eu realmente não to com cabeça para isso).
De súbito, perco meu álibi, pois ela sai andando. Sinto vontade de ir atrás dela, mas a garota segura minha nuca e pressiona sua boca em um beijo forte e caloroso. Infelizmente, sou fácil assim: foi dá-lo, entro no exato clima da noite. Ficamos quase 20 minutos nos beijando, quando ouço uma garrafa quebrando.
O vidro se espalha por todo o chão, junto do líquido, mas o mais espantoso não é o objeto em si, mas o porquê da queda. Olho um pouco acima da (ex)garrafa e vejo Carol muito perto de um cara. Já vi isso tantas vezes que, sem ter notado nos acontecimentos anteriores, sei a cena completa.
Primeiro ela saiu de perto de mim, que impediria-a de começar tudo. Chegou perto de um dos rapazes, obviamente interessado nela, e deu em cima dele. O oculto nessa interação é a razão de ela estar ali, mesma razão do interesse dela mais cedo naquele grupo: o dinheiro. Ela viu neles carteiras recheadas, celulares novos  e chaves de carros caríssimos. Mas não, o dinheiro não é motivo para ela ficar com os caras, mas sim para furta-los. É comportamento natural dela uma aproximação com essa atividade, e os estaria acontecendo, se ela (por um descuido raro) ao tentar pegar a carteira da mesa, não tivesse derrubado a garrafa no chão, levando à tona todo o plano. O garoto agora estava vermelho, tanto pela vergonha que a atenção excessiva deu-lhe quanto pela raiva de estar sendo enganado.
Por ironia do destino, Nando guardara o Anúbis, e estava com a chave do carro na mão entrando junto de Luana, quando reconhece a mesma cena que eu. Jonas e Vic imediatamente se encaminham para separar seja lá o que começava, mas já era tarde. O álcool mexera com a cabeça do homem e ela estava feita para espancar minha amiga. Vou rapidamente entre os dois. Entendo a raiva dele, porém, Carol é próxima e sempre fazemos a devolução de seus pequenos delitos, seja em bebida, seja na própria conta que, surpreendentemente, diminui. Não há sequer chance de diálogo. Olho em seu rosto, e há veias e artérias saltando deste e do seu pescoço. A mão fecha com força mas não velocidade, denunciando a lerdeza do álcool e a covardia do soco inglês que é intencionado. Empurro Carol para o lado e seguro o braço do homem, já dando o primeiro golpe em seu rosto. O segundo é na barriga. O terceiro sou eu que tomo, bem firme no rosto.
Chega alguém e expulsa os envolvidos na briga do bar, e pelo toque das mãos sinto ser Júlio, pois ja não vejo nada. Sinto o efeito de todos os drinks de uma vez e sento-me no chão.
Ao meu lado, algo embaçado parecido com algumas pessoas se sentam. São 4 fumaças não muito claras, 3 pequenas e 1 grande. Parecem uma massa homogênea que, de alguma forma, consigo distinguir. Não ouço nada, mas sinto a presença parecida com a dos meus amigos, e assumo ser essa a tal companhia. Após 30 minutos, a tontura diminui e fica somente a dor do soco, junto de uma garrafa pela metade de nome indecifrável e uma conversa profunda entre os membros daquele grupo. Pego a câmera, mas agora não é o momento.
Jonas olha nosso estado e deixa as chaves com Júlio (que apesar de me expulsar do bar, entende o motivo) e vamos juntos andando para as nossas casas.
Pela ordem, devo ser o primeiro, pois a República fica ao lado da ponte  por onde passamos a caminho do Zeppelins. Ela é estaiada e escura à noite, porém, pelo tamanho do grupo não nos preocupamos com assaltantes. A lua está em seu ponto de descida, e a luz bate em meu rosto, me convidando a sentar no meio da avenida. E é isso que faço. Claro, sou taxado de louco nos 5 primeiros minutos. Depois disso, aos poucos ,todos sentam, e ficam observando o luar ao meu lado. O céu é claro com nuvens rápidas, como se fugissem de seu destino final, ao contrário da lua, imponente em seu lugar, abraçando seu fardo de dar espaço ao sol. Por sorte, nenhum carro passa, e depois de um bom tempo, levantamos e saímos andando.
Ao chegar no portão de ferro enorme, eu e Carol nos despedimos de todos com beijos e abraços. Nos olhamos com cumplicidade. Se nossos colegas de quarto soubessem disso…
Ela atravessa a porta, adentrando a casa. Silenciosos como dois criminosos, encaminhamos-nos ao banheiro. Sob a luz de um amanhecer que se inicia, nos olhamos, felizes pelas besteiras feitas, gratos pelas evitadas. Coloco a cabeça na pia, tomo três golpes d’água, e deixo a torneira aberta. Ela coloca cabeça, e, nesse momento, o sol sai com a maior vontade. Pego a câmera, focalizando aqueles lábios rosados, cansados de uma noite de fumaça e bebida, mas (assim como eu) prontos para outra aventura a partir do momento em que a água gelada toca a boca.

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Boca

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Bom dia.- Diz o homem à secretária.
Ela responde, com um calorosíssimo “bom dia”, indagando o porquê de tanta felicidade. Boa pergunta. “Deve ter sido a minha boa noite de sono”. Boa… acordou tantas vezes que não tem nem como chamar aquilo de sono. Pensou em tantas coisas que não há como falar que descansou. Mas claro, foi uma boa noite de sono. “Então tenha um bom dia!”, diz ela, fingindo que acredita em sua fala. Ok. Segue seu caminho à sua sala.
Entrando lá, tenta ligar o computador. Falho, não consegue. Respira profundamente e pensa em outra coisa. pega seu bloco e ameaça escrever estratégias. Em sua cabeça, ele está longe… está numa praça. Não há em sua mão uma caderneta para táticas de marketing para maionese e condimentos, por mais que paressece muito interessante. Não, ele divulga uma revolução. Ele berra, tentando alcançar com sua voz todos que ali estão. Todos olham, como se saíssem de seus movimentos repetitivos. Escrever, devorar, dormir. Dirigir, lamber, pousar. Anotar, engolir, jazer.
Ele pisca. Meio-dia. O computador ligou e não há sequer uma palavra em seu bloco. Acontece. Ele sai do escritório e vai com seus colegas ter um bom almoço.
“E o Coringão?! Cara que jogo!”
“A Katy nunca esteve tão gostosa…”
“O iPhone 8 vai lançar logo logo, estou louco para ver”
Ouve tudo aquilo com um falso sorriso e um olhar de desprezo. Vai ao banheiro, ao fim do almoço. Quer escovar os dentes, pois higiene é um dos únicos privilégios para cultivar sua individualidade. Pequena? Sim. Porém, completamente sua.
No mundo no qual ele vive, ele não se sente mais do que um corpo numa grande colônia, seguindo as outras formiguinhas. Higiene, pensamento e livros são as únicas coisas que o fazem sentir fora dessa grande massa manipulada.
Enxágua a boca com plax. Cospe, mas não só ele sai no ato, junto do líquido: sua boca. Ela cai ali, qual fosse um aparelho. Assusta-se. Pega, desesperadamente, tentando colocá-la em seu lugar. Que pena dele. Tenha calma, caro leitor. Você vai entender. Só espere.
Ele não obtém exito. Para falar a verdade, algo mais curioso ainda acontece com nosso protagonista. O local onde supostamente deveria estar sua boca não existe. Não há “buraco”.
Ele vai ao refeitório e tenta comunicar-se com seus amigos, que não notam absolutamente nada diferente nele, e falam “Venha! Vamos se atrasar!”. Ele fica perplexo. Como não veem? Coloca com cuidado seu órgão no bolso e vai.
Na rua, anda e desanda, e ninguém dá a mínima ao pobre homem. Pisa no pé de um, mas não consegue pedir desculpas. Quando seu pé toca o bueiro, sente os ratos correndo. Talvez tenham se assustado com a anomalia de sua boca. Chega no seu escritório, passando pelo elevador.
Aquela moça está ali. Olhos azuis, cabelo preto… ah! Sem dúvida daria umas chances para ela. Porém, sem boca para sequer pronunciar uma palavra, como beijaria? Ele não sabe o que fazer, então, faz uma tentativa de sorrir com os olhos, e não sabe se conseguiu, pois o sorriso recebido, talvez, em troca, pode ser tanto falso como verdadeiro. Nunca saberá.  Ela desce a um andar dele. Por alguns segundos ele talvez conseguisse…
Décimo terceiro andar.
Chega na sua sala, pega um bloco de notas e uma caneta, vai a tentativa de comunicar-se com a secretária.
– Você vê isso?
– Mas, senhor, não vejo nada… cortou o cabelo?- Ele se irrita. Entra novamente no seu ambiente, isolando-se.
Pisca novamente. 6h. O céu se põe lentamente na Paulista. Ele sai do escritório e vai de carro para casa.
Pouco antes de deitar-se, tateia o bolso. Já havia esquecido, ela estava ali. Inutilmente, tenta pressioná-la contra o lugar onde deveria estar, mas desiste quando corta sua pele. Deita, fecha seus olhos e faz o tal dormir.
3h da manhã. Acorda. Olha para ambos lados. A insônia nunca passa…
Vai a cozinha, enche um copo d’água, vai beber e se molha inteiro. Esqueceu da localização bizarra de sua boca; ele respira profundamente, finge que não tem sede e volta à cama.
5h da manhã. Ele continua chamando isso de sono. Ridículo…
O leitor deve estar se perguntando algumas coisas: “por que a falta da boca?” “Como isso é possível?” “Por que ninguém nota?” “Tenho certeza que a 1a coisa que qualquer pessoa faria é procurar um médico; ou há um problema físico, ou mental!” Calma, relaxe. É a coisa mais normal do mundo ficar sem boca!
O homem acorda. Abre os olhos, e desta vez são 9h. Mais algum minutos o fariam ficar atrasado, então, vai tomar seu banho. Toma um susto ao olhar o espelho. Ainda não acostumou-se com aquela aberração.
Lembra-se da reunião que terá. Como participaria? Termina seu banho de água gelada para acordar, pega uma xícara, que não tomará, de café e entra em seu carro.
Chegando no escritório, encaminha-se para a grande reunião do dia. Todos passam a falar.
“As vendas de ketchup estão caindo…”
“A geração Z não tem interesse em condimentos, temos de criar novas estratégias!”
“Deveríamos investir nos bebês.”
O homem, como sempre, tem idéias. Ah, como tem! Nunca consegue falá-las, porém, desta vez, ele levanta sua mão com convicção e faz jogos de mão, cabeça e corpo todo na tentativa de expressar alguma de suas opiniões, benéficas à empresa.
O chefe olha, e clama:
– Mas é claro! O senhor tem toda razão
Porém, o homem se desaponta. Olha o planejamento rápido feito pelo chefe e vê exatamente o contrário do que quis dizer. Perplexo, atônito. “Como?! Eu nunca falei isso! O ano será perdido desse jeito! Ah, dane-se. Depois que arquem com isso. Vai cair em mim, mas eu não ligo. Nunca quis estar nessa merda de lugar mesmo.”
Tenta novamente expor-se, dessa vez em outro tópico. Falho. A mesma coisa acontece. “Ninguém me entende”. Na verdade, entende. Mas tudo, menos o intencionado.
O homem sai da reunião e vai à sua sala, pisca. Não está mais ali. Sente novamente sua boca, e está na mesma praça. Gritos e gritos. Mas dessa vez é rápido, pois ele pisca e está em seu carro. Chega em casa, deita e dorme. Agora, sequer tenta beber água, escovar os dentes. Escreve na prancheta. Devora um sanduíche. Dorme em sua cama. Dirige pela Paulista. Lambe o prato. Pousa em seu travesseiro. Anota numa planilha. Engole um pedaço. Jaz em seu leito.
Um dia, o homem se olha no espelho. “Ora, até que fico bem desse jeito”.
Dessa vez, chega no escritório, olha para a secretária. Há algo estranho, mas com ela, não ele. Ela dá bom dia, ele responde. Como responde?! Mas ele não tem boca! Espera, mas o que é boca?! Ele olha novamente a moça, e, no fundo dos seus olhos, não vê nada diferente. Pisca, olha um pouco abaixo.
Onde está seu sorriso?

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