No país das correntes

O Branco da Luz entrava por meus olhos lúcidos. Quem esquecera de fechar as cortinas? Não tive idéia do porquê de eu (possivelmente) teria feito isso. Não me incomodava, dentre muitas das coisas estranhas a minha volta, com a incompreensão do presente. Era preferível vivê-lo. É doce a sensação de acordar e não ter ideia de como parou ali. Simplesmente descer escadas.
Com a mão apoiando, segurei devagar e fui descendo,  saboreando cada passo dado. Ao fim da nem tão longa escadaria, senti cheiro de ovos. Meu peito doeu instantaneamente ao contato com o odor. Ignorei, apesar da intensidade, e sentei mesa. Pulei o café, fui direto ao almoço.
– Alicia querida… tudo bom?- Sentia a apreensão na voz de minha mãe
-Sim mãe… pode fazer um pra mim?
-Claro filha.
Por algum motivo, não conseguia identificar o elemento estranho na situação. A mesa suja de giz (natural, meus pais são professores), a cadeira vazia… era isso. Nem meu irmão não estava sentado, muito menos meu pai. Indaguei isso em voz alta, e fui respondida com um prato de ovos na mesa e uma rápida saída da sala, com o contato visual extremamente evitado pela parte dela.
Nunca tive uma preferência por companhias, todas são dispensáveis e inúteis, inclusive a de minha família. Já a muito eu era tratada como uma excluída, mesmo sem motivos aparentes, e minha rejeição pela sociedade era proporcional a exclusão por ela produzida. A refeição seguiu calma e lenta, terminei-a com apetite saciado.
Fui ao meu quarto para fazer a arrumação. Olhei os pôsteres; tanto trabalho para conseguir cada um deles, mas tão fácil sua perda, um rasgãozinho bastava para eu eliminar algum da parede. Seria meu perfeccionismo uma maneira de me distrair dos problemas sociais? Não lembrava de onde vinham os problemas, então, não havia resposta. Notei em um estrategicamente colocado para dividir meu quarto e do meu irmão- havia um pequeno furo na parede, suficiente para olhar e ouvir o do lado- e vi um borrão, trazendo a necessidade de  tirá-lo dali.
Ao removê-lo, vei meus pais e meu irmão conversando, em tom extremamente baixo, quase contando segredos. Tentei ler os lábios, mas não consegui. Olho um pouco ao lado e vejo mais um pouco de giz no buraco, apesar de não haver contato dos meus pais com aquela fissura. A última coisa que me lembro foi um grito seguido da palavra louca, trazendo um sentimento de desespero e uma longa respiração.

  • ●●

Dessa vez era escuro. Não tive ideia de onde estava. Meu quarto não era, pois eu repousava no chão frio e duro. Também não minha casa, o cheiro era muito estranho para isso e minha casa cheia nojento diferente. Aos poucos, eu voltei aos sentidos, sem a menor idéia do porquê estava ali. Essa memória não vinha, então assumi ser um desmaio. Ouvi uma voz conhecida, parecida com a de um colega de escola.
Foi super amigável comigo, quase inocente mas com um quê aproveitador. Ajudou-me a levantar, mas minha cabeça doía muito, tornando o raciocínio impossível. Passou a mão no meu corpo inteiro, tateia muito além que até um policial iria. Perguntou a mim se eu ainda tinha alguma coisa.
Supus o assunto ser planos, e contei a ele que não. Após isso, sou levada por ele até seu carro, onde ele dirigiu até alguma balada. Entramos lá facilmente.
A entrada é forte em minha memória; grandes quantidades de sacos em mãos de pessoas aleatórias, muita fumaça no ambiente e música abafando todos os outros sons. Vou dançar com o amigo, completamente chapado.
A partir daí, as memórias ficam mais fracas… não consigo lembrar muita coisa. Uma mesa suja, muitos cartões de crédito. Risadas altas. Mas, além de um beijo quente e pesado da mesma pessoa que fala, somente uma frase simples: Ela deve ser doente!

  • ●●

Um esfregão me acordou desta vez. A moça indelicadamente me mandou sair do local, e eu saio tropeçando. Negra, aparentemente velha (pela semi-calvície), extremamente rude comigo; mas segui suas ordens. Não tinha idéia de quando desmaiara, mas olhei acima e notei que o clube não era o mesmo do qual me lembrava.
Olhei algumas ruas, vagando sem destino ou pretensão e identifiquei estar na vizinhança de Chapa, um antigo amigo. Através de perguntas a desconhecidos, subindo e descendo a mesma rua, encontrei o local. Apareci em sua casa, em estado degradante, e pedi só para ser levada para casa.
Chapa perguntou sobre meu rosto, vermelho, e culpei  o maldito esfregão e a faxineira. Senti rosto entupido, suspeitando uma gripe forte, o nariz extremamente fechado para inspirar e expirar. Quando tocou meu braço, Chapa puxou minhas mangas acidentalmente. A dor causada por isso veio de duas direções: a psicológica, de ver linhas retilíneas no pulso as quais seguiam direções que não as da veia, sem razão aparente; e a física pelo atrito da roupa com o braço fazia um leve sangramento, denunciando o quão recente é o incidente.
Na hora, ligou para meus pais, e tudo corria relativamente bem, mas o maior problema foi a fala, desesperada, me tratando como louca.
-Ela não tem a menor ideia do que está acontecendo, dona. Alicia já perdeu a cabeça.

  • ●●

Lembro cenas após isso.
A ambulância me levando mas me sedando por algum motivo, com seguranças me prendendo à cadeira. Olhei para o espelho do teto e vi meus olhos vermelhos sangue, minha face roxa como se eu tivesse sofrido uma asficcia. Mesmo assim, não deixei de flagrar um sorriso enorme e desesperado de quem sente falta de algo.
O médico estranho me visitando dia sim, dia não. Sempre perguntando de meu apetite, mantendo uma distância sem sentido algum. Por que ele fazia isso?
Minha família me abandonando.
Lembro de ser trazida pra cá, numa cadeira de força, meus pais assinando um contrato. Lembro dos homens falarem para mim que eu estava perdida. Lembro de socar a parede de concreto extremamente raivosa por motivos desconhecidos por mim, nesse momento.
Com algemas fortes e sala branca, não sabia o porquê estava aqui. Só comia, olhava, pensava. Aqui, não dava pra socar a parede, ela é muito macia. Não tenho idéia de quanto tempo se passou. Aí o senhor veio e entrou na sala, colocou uma mesa.
-Agora sabe o porquê está nessa clínica, Alicia?
-Não.
-Agora sabe o porquê está nessa clínica, Alicia?
-Não.

-Responda a verdade.

 
Com um sorriso enorme e desesperado, olhos saltados, certos da resposta, falo:
-Todos ouvem vozes na minha cabeça;
O agente de preto pega um saco transparente com algo Branco dentro e joga com força na mesa.
-Não! Você também ouve?!
-Alicia, só faltam vozes na sua cabeça.

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Este post tem 2 comentários

  1. luananodari

    Nossaaaa, que texto forte e surpreendente.
    Ele mostra o quanto não querer etrar em contato com os sentimentos e resolve-los pode gerar um problema maior ainda. Ser tratada como uma excluída tem que ser resolvido até que não se sinta excluída, e isso pode ter sido uma pontinha do iceberg.
    Apesar de eu já saber o final porque quem leu antes me contou, não me atrapalhou em nada, surpreende mesmo assim.

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