A cleptomania- As crônicas de um fotógrafo

Fotógrafa- Petra Collins

O carro treme. Não deveria, mas o modelo antigo e a falta de cuidado de Jonas fizeram-no ficar completamente perigoso. Dá-se a partida, todos já estamos prontos. De praxe, já estamos em nossos lugares praticamente pré-definidos.
Sendo o dono,Jonas não confia em ninguém além de si (e Carol, após 1 ou 2 shots de Cuervo) para dirigir, ocupando, naturalmente, o banco do motorista. Por conhecer toda a São Paulo desde quase feto, fico no passageiro, direcionando o caminho para seja lá onde é o destino. Carol, minha companheira de quarto na república, (além de backup para motorista) divide o banco de trás com Vic e Nando, e, na maioria das vezes, decide qual será o programa da noite. Vic chama as outras pessoas, que regularmente comparecem aos encontros, mas o grupo dos 5 sempre está junto. Nando é o cara das bebidas, fumos e tudo mais, apesar de ter sido o último do grupo a fazer tudo aquilo.
Hoje, vamos a um bar chamado Zeppelins. Pequeno, elegante pelo tema tão apreciado por todos nós, o Rock, permissivo com arguilés. Se tornou um destino frequente do grupo nos últimos tempos.
Chegamos ansiosos pela noite, saindo do carro rapidamente, parte por ansiedade, parte por medo do veículo acabado.
– Vocês são uns ingratos. Eu vou na casa de todo mundo, busco, dirijo, e vocês menosprezam o Larry.
– Tem razão Jonas. Melhor a gente tratá-lo melhor, vai que resolve quebrar na volta…- Nando responde, quase como se estivesse aguardando algum comentário. As piadas continuam sendo feitas, um aquecimento para a noite.
Permaneço quieto. Tenso com a faculdade e situações familiares, simplesmente fico olhando a interação, feliz por estar ali ao menos tentando me distrair. Todos sabem do meu estranhamento, mas tem noção do que deve ser feito. Olhando em volta , meus olhos vão ao encontro de um homem alto, com cabelo grande e grisalho, preso num coque, deixando uma imagem neutra.
– Júlio!
– E aí Zack! Como estamos?
– Muito bem, viemos  passar a noite por aqui. Muito movimento hoje?
– Pequeno, mas vai crescer. Chamamos umas bandas pra tocar hoje, vai ser uma loucura… fica esperto em moleque!
– Relaxa, vou ficar bem hoje!
– Até parece. Bem, vou lá pegar uma cerveja, quer o de sempre?
– Uhum, pode pedir pra trazer uma rodada normal enquanto não sentamos.
– Então seria 1 Sobi com 1⁄3 Jack, 3 Corona com limão e o Blood?
– Isso mesmo. Valeu, Júlio.
Olho pro lado, notando nos acontecimentos simultâneos a essa conversa com meu velho conhecido. Nando já está em cima de uma garota aleatória; Vic e Jonas falam de literatura ou algo do tipo (posso jurar que ouvi o termo Kafkaniano) e Carol observa atentamente a mesa ao lado.
Pode ser observado um grupo de 8 pessoas, todos homens. Todos tomam cerveja barata, do tipo que Júlio sempre tentou remover do cardápio de bebidas, mas a natureza do público varia muito, tornando assim impossível essa possibilidade. Há alguns litros ali, denunciando uma expectativa de noite longa e uma disposição clara para gastar dinheiro na maior quantia de álcool possível. Conheço aquele olhar. É o olhar de quem está muito interessada em algo.
Qualquer um, de primeira, ao tentar decifrar esse momento, falaria de interesse sexual profundo dela por algum deles. Sua pupila está dilatada, seus lábios rosa secaram e sua respiração é quase manual de tão profunda. Quase acertaria neste palpite, exceto no tipo de interesse e o objeto de interesse.
Vou até ela, seguro seu braço levemente e puxo seu olhar ao meu. Ela entendeu a mensagem. Dá um sorriso travesso, como criança aprontando escondido.
O momento é atrapalhado quando alguém me empurra, fazendo assim eu cair em cima de minha amiga. Olho agitado para trás, pronto para começar uma confusão quando vejo Nando e a tal garota se agarrando. Ele olha pra mim em tom de desculpas, mas continua com a garota. Seus olhos castanhos são doces e calmos, parecidos com os de um surfista olhando uma boa onda.
Desvio deles e sento com Jonas e Vic. Nesse momento, o garçom traz as bebidas, dá meu Crovral (nome dado por mim ao meu drink predileto) e as cervejas na minha frente, deixa a de Nando de lado e entrega o Blood para Carol, que se aloca ao meu lado. Dou um toque em Jonas: é o momento perfeito para o Anúbis.
Vamos até o carro. No porta-malas pegamos uma mala preta velha, porém conservada. Junto por acaso, vejo minha velha câmera e pego-a, para alguma diversão. Entramos novamente no bar, e em nossa mesa é retirado o tampão do meio, revelando uma tomada, uma torneira e espaço vazio. Tiramos a peça da mala. Ele é grande, bate quase no meu peito. Seu vaso é totalmente preto, com detalhes talhados por relevo no formato de um dragão. O corpo é metálico, respiro de dado vermelho elegante. O rosh é de cerâmica, também preto, mas com linhas irregulares saindo do centro da cabeça. A mangueira é de veludo preto igual, porém, a pateira e o aveludado são igualmente brancos. Quando terminamos de montar, acender o carvão, preparar a essência e tudo, iniciamos a sessão.
Não propositalmente, todo o bar para afim de ver a preparação do nosso Anúbis (apesar de este não ser o modelo, o nome simbólico ficou) uma obra de arte greco-egípcia ou árabe. Chamamos tanta atenção que, nesse momento, Júlio bota a primeira banda no palco, para aproveitar a união feita.
É uma boa música, como de se esperar de uma escolha feita por alguém tão experiente quanto meu amigo. O show anima o público presente no Zeppelins e atrai ainda mais galeras.
Após 3 horas de música (e 2 sessões perfeitas) acabam os shows e o panorama é de mistura total. Nando e Luana (seria esse o nome dela, aparentemente) vão para o carro e agora praticamente todos têm uma companhia amorosa. Praticamente, pois eu e Carol, apesar de juntos, não somos um casal. A situação muda quando, repentinamente,uma loira senta na minha frente. Pergunta da câmera em meu colo, e conta do curso de fotografia que está fazendo e… eu realmente não me importo. Mas sigo com a conversa, regularmente parando para olhar Carol (normalmente quando o clima fica propenso ao beijo; eu realmente não to com cabeça para isso).
De súbito, perco meu álibi, pois ela sai andando. Sinto vontade de ir atrás dela, mas a garota segura minha nuca e pressiona sua boca em um beijo forte e caloroso. Infelizmente, sou fácil assim: foi dá-lo, entro no exato clima da noite. Ficamos quase 20 minutos nos beijando, quando ouço uma garrafa quebrando.
O vidro se espalha por todo o chão, junto do líquido, mas o mais espantoso não é o objeto em si, mas o porquê da queda. Olho um pouco acima da (ex)garrafa e vejo Carol muito perto de um cara. Já vi isso tantas vezes que, sem ter notado nos acontecimentos anteriores, sei a cena completa.
Primeiro ela saiu de perto de mim, que impediria-a de começar tudo. Chegou perto de um dos rapazes, obviamente interessado nela, e deu em cima dele. O oculto nessa interação é a razão de ela estar ali, mesma razão do interesse dela mais cedo naquele grupo: o dinheiro. Ela viu neles carteiras recheadas, celulares novos  e chaves de carros caríssimos. Mas não, o dinheiro não é motivo para ela ficar com os caras, mas sim para furta-los. É comportamento natural dela uma aproximação com essa atividade, e os estaria acontecendo, se ela (por um descuido raro) ao tentar pegar a carteira da mesa, não tivesse derrubado a garrafa no chão, levando à tona todo o plano. O garoto agora estava vermelho, tanto pela vergonha que a atenção excessiva deu-lhe quanto pela raiva de estar sendo enganado.
Por ironia do destino, Nando guardara o Anúbis, e estava com a chave do carro na mão entrando junto de Luana, quando reconhece a mesma cena que eu. Jonas e Vic imediatamente se encaminham para separar seja lá o que começava, mas já era tarde. O álcool mexera com a cabeça do homem e ela estava feita para espancar minha amiga. Vou rapidamente entre os dois. Entendo a raiva dele, porém, Carol é próxima e sempre fazemos a devolução de seus pequenos delitos, seja em bebida, seja na própria conta que, surpreendentemente, diminui. Não há sequer chance de diálogo. Olho em seu rosto, e há veias e artérias saltando deste e do seu pescoço. A mão fecha com força mas não velocidade, denunciando a lerdeza do álcool e a covardia do soco inglês que é intencionado. Empurro Carol para o lado e seguro o braço do homem, já dando o primeiro golpe em seu rosto. O segundo é na barriga. O terceiro sou eu que tomo, bem firme no rosto.
Chega alguém e expulsa os envolvidos na briga do bar, e pelo toque das mãos sinto ser Júlio, pois ja não vejo nada. Sinto o efeito de todos os drinks de uma vez e sento-me no chão.
Ao meu lado, algo embaçado parecido com algumas pessoas se sentam. São 4 fumaças não muito claras, 3 pequenas e 1 grande. Parecem uma massa homogênea que, de alguma forma, consigo distinguir. Não ouço nada, mas sinto a presença parecida com a dos meus amigos, e assumo ser essa a tal companhia. Após 30 minutos, a tontura diminui e fica somente a dor do soco, junto de uma garrafa pela metade de nome indecifrável e uma conversa profunda entre os membros daquele grupo. Pego a câmera, mas agora não é o momento.
Jonas olha nosso estado e deixa as chaves com Júlio (que apesar de me expulsar do bar, entende o motivo) e vamos juntos andando para as nossas casas.
Pela ordem, devo ser o primeiro, pois a República fica ao lado da ponte  por onde passamos a caminho do Zeppelins. Ela é estaiada e escura à noite, porém, pelo tamanho do grupo não nos preocupamos com assaltantes. A lua está em seu ponto de descida, e a luz bate em meu rosto, me convidando a sentar no meio da avenida. E é isso que faço. Claro, sou taxado de louco nos 5 primeiros minutos. Depois disso, aos poucos ,todos sentam, e ficam observando o luar ao meu lado. O céu é claro com nuvens rápidas, como se fugissem de seu destino final, ao contrário da lua, imponente em seu lugar, abraçando seu fardo de dar espaço ao sol. Por sorte, nenhum carro passa, e depois de um bom tempo, levantamos e saímos andando.
Ao chegar no portão de ferro enorme, eu e Carol nos despedimos de todos com beijos e abraços. Nos olhamos com cumplicidade. Se nossos colegas de quarto soubessem disso…
Ela atravessa a porta, adentrando a casa. Silenciosos como dois criminosos, encaminhamos-nos ao banheiro. Sob a luz de um amanhecer que se inicia, nos olhamos, felizes pelas besteiras feitas, gratos pelas evitadas. Coloco a cabeça na pia, tomo três golpes d’água, e deixo a torneira aberta. Ela coloca cabeça, e, nesse momento, o sol sai com a maior vontade. Pego a câmera, focalizando aqueles lábios rosados, cansados de uma noite de fumaça e bebida, mas (assim como eu) prontos para outra aventura a partir do momento em que a água gelada toca a boca.

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