– Bom dia.- Diz o homem à secretária.
Ela responde, com um calorosíssimo “bom dia”, indagando o porquê de tanta felicidade. Boa pergunta. “Deve ter sido a minha boa noite de sono”. Boa… acordou tantas vezes que não tem nem como chamar aquilo de sono. Pensou em tantas coisas que não há como falar que descansou. Mas claro, foi uma boa noite de sono. “Então tenha um bom dia!”, diz ela, fingindo que acredita em sua fala. Ok. Segue seu caminho à sua sala.
Entrando lá, tenta ligar o computador. Falho, não consegue. Respira profundamente e pensa em outra coisa. pega seu bloco e ameaça escrever estratégias. Em sua cabeça, ele está longe… está numa praça. Não há em sua mão uma caderneta para táticas de marketing para maionese e condimentos, por mais que paressece muito interessante. Não, ele divulga uma revolução. Ele berra, tentando alcançar com sua voz todos que ali estão. Todos olham, como se saíssem de seus movimentos repetitivos. Escrever, devorar, dormir. Dirigir, lamber, pousar. Anotar, engolir, jazer.
Ele pisca. Meio-dia. O computador ligou e não há sequer uma palavra em seu bloco. Acontece. Ele sai do escritório e vai com seus colegas ter um bom almoço.
“E o Coringão?! Cara que jogo!”
“A Katy nunca esteve tão gostosa…”
“O iPhone 8 vai lançar logo logo, estou louco para ver”
Ouve tudo aquilo com um falso sorriso e um olhar de desprezo. Vai ao banheiro, ao fim do almoço. Quer escovar os dentes, pois higiene é um dos únicos privilégios para cultivar sua individualidade. Pequena? Sim. Porém, completamente sua.
No mundo no qual ele vive, ele não se sente mais do que um corpo numa grande colônia, seguindo as outras formiguinhas. Higiene, pensamento e livros são as únicas coisas que o fazem sentir fora dessa grande massa manipulada.
Enxágua a boca com plax. Cospe, mas não só ele sai no ato, junto do líquido: sua boca. Ela cai ali, qual fosse um aparelho. Assusta-se. Pega, desesperadamente, tentando colocá-la em seu lugar. Que pena dele. Tenha calma, caro leitor. Você vai entender. Só espere.
Ele não obtém exito. Para falar a verdade, algo mais curioso ainda acontece com nosso protagonista. O local onde supostamente deveria estar sua boca não existe. Não há “buraco”.
Ele vai ao refeitório e tenta comunicar-se com seus amigos, que não notam absolutamente nada diferente nele, e falam “Venha! Vamos se atrasar!”. Ele fica perplexo. Como não veem? Coloca com cuidado seu órgão no bolso e vai.
Na rua, anda e desanda, e ninguém dá a mínima ao pobre homem. Pisa no pé de um, mas não consegue pedir desculpas. Quando seu pé toca o bueiro, sente os ratos correndo. Talvez tenham se assustado com a anomalia de sua boca. Chega no seu escritório, passando pelo elevador.
Aquela moça está ali. Olhos azuis, cabelo preto… ah! Sem dúvida daria umas chances para ela. Porém, sem boca para sequer pronunciar uma palavra, como beijaria? Ele não sabe o que fazer, então, faz uma tentativa de sorrir com os olhos, e não sabe se conseguiu, pois o sorriso recebido, talvez, em troca, pode ser tanto falso como verdadeiro. Nunca saberá. Ela desce a um andar dele. Por alguns segundos ele talvez conseguisse…
Décimo terceiro andar.
Chega na sua sala, pega um bloco de notas e uma caneta, vai a tentativa de comunicar-se com a secretária.
– Você vê isso?
– Mas, senhor, não vejo nada… cortou o cabelo?- Ele se irrita. Entra novamente no seu ambiente, isolando-se.
Pisca novamente. 6h. O céu se põe lentamente na Paulista. Ele sai do escritório e vai de carro para casa.
Pouco antes de deitar-se, tateia o bolso. Já havia esquecido, ela estava ali. Inutilmente, tenta pressioná-la contra o lugar onde deveria estar, mas desiste quando corta sua pele. Deita, fecha seus olhos e faz o tal dormir.
3h da manhã. Acorda. Olha para ambos lados. A insônia nunca passa…
Vai a cozinha, enche um copo d’água, vai beber e se molha inteiro. Esqueceu da localização bizarra de sua boca; ele respira profundamente, finge que não tem sede e volta à cama.
5h da manhã. Ele continua chamando isso de sono. Ridículo…
O leitor deve estar se perguntando algumas coisas: “por que a falta da boca?” “Como isso é possível?” “Por que ninguém nota?” “Tenho certeza que a 1a coisa que qualquer pessoa faria é procurar um médico; ou há um problema físico, ou mental!” Calma, relaxe. É a coisa mais normal do mundo ficar sem boca!
O homem acorda. Abre os olhos, e desta vez são 9h. Mais algum minutos o fariam ficar atrasado, então, vai tomar seu banho. Toma um susto ao olhar o espelho. Ainda não acostumou-se com aquela aberração.
Lembra-se da reunião que terá. Como participaria? Termina seu banho de água gelada para acordar, pega uma xícara, que não tomará, de café e entra em seu carro.
Chegando no escritório, encaminha-se para a grande reunião do dia. Todos passam a falar.
“As vendas de ketchup estão caindo…”
“A geração Z não tem interesse em condimentos, temos de criar novas estratégias!”
“Deveríamos investir nos bebês.”
O homem, como sempre, tem idéias. Ah, como tem! Nunca consegue falá-las, porém, desta vez, ele levanta sua mão com convicção e faz jogos de mão, cabeça e corpo todo na tentativa de expressar alguma de suas opiniões, benéficas à empresa.
O chefe olha, e clama:
– Mas é claro! O senhor tem toda razão
Porém, o homem se desaponta. Olha o planejamento rápido feito pelo chefe e vê exatamente o contrário do que quis dizer. Perplexo, atônito. “Como?! Eu nunca falei isso! O ano será perdido desse jeito! Ah, dane-se. Depois que arquem com isso. Vai cair em mim, mas eu não ligo. Nunca quis estar nessa merda de lugar mesmo.”
Tenta novamente expor-se, dessa vez em outro tópico. Falho. A mesma coisa acontece. “Ninguém me entende”. Na verdade, entende. Mas tudo, menos o intencionado.
O homem sai da reunião e vai à sua sala, pisca. Não está mais ali. Sente novamente sua boca, e está na mesma praça. Gritos e gritos. Mas dessa vez é rápido, pois ele pisca e está em seu carro. Chega em casa, deita e dorme. Agora, sequer tenta beber água, escovar os dentes. Escreve na prancheta. Devora um sanduíche. Dorme em sua cama. Dirige pela Paulista. Lambe o prato. Pousa em seu travesseiro. Anota numa planilha. Engole um pedaço. Jaz em seu leito.
Um dia, o homem se olha no espelho. “Ora, até que fico bem desse jeito”.
Dessa vez, chega no escritório, olha para a secretária. Há algo estranho, mas com ela, não ele. Ela dá bom dia, ele responde. Como responde?! Mas ele não tem boca! Espera, mas o que é boca?! Ele olha novamente a moça, e, no fundo dos seus olhos, não vê nada diferente. Pisca, olha um pouco abaixo.
Onde está seu sorriso?
Ter boca ou não nem sempre faz diferença, não é mesmo??? Será que as pessoas querem entender o que é dito? Ou querem ver um sorriso, ou a ausência dele?
Mas se desapontar com isso, é uma projeção feita do que você esperava que o outro fosse, o que pode aumentar ainda mais o desapontamento.
A sorte é que a boca voltou logo, senão o personagem teria descoberto muitos outros sentimentos que ele teria que lidar, e talvez não desse conta.