Liberdade de Shaolin

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Liberdade de Shaolin

Abro meus olhos e vejo os primeiros raios de sol entrando pela janela. Não é nem perto do meu horário, mas eu não dou importância para isso. Meu instinto me diz que é hora de levantar. Olho o cômodo pouco iluminado e acendo uma vela; As coisas estão exatamente como as deixei no dia em que cheguei no Templo.

Hoje, já tem 13 anos do meu abandono da vida de governador civil e do início da minha procura pela paz. Passei por uelemá, mas não cheguei nem perto do que procuro. Sentia-me igualmente poderoso, influenciador, alguém que, por ter maior conhecimento (adquirido após um tempo de estudo hábil do Alcorão e da Suna), tira a humanidade dos meus semelhantes. Depois, fui ao campo, trabalhei como um semi-servo, achando que, por obedecer, iria apaziguar meu espírito. Fui igualmente falho. Eu estava abandonando minha própria humanidade. Por mais que eu quisesse o bem nos 3 lugares pelos quais passei, eu me sentia corrompido, tanto por “mandar” quanto por obedecer.

Cheguei ao ponto de achar que, na minha terra natal, a China, nunca encontraria a verdadeira paz. Viajei, mas não durou, pois nada me apetecia, desde a beleza da terra do Papa até o luxo dos Sultões. Até que, com todo esse conflito interior, decidi passar uns dias num mosteiro afastado de tudo. O Templo de Shaolin, o mais próximo que cheguei do que minha mente pedia.

Aceitaram-me de início, me alocaram neste quarto e me explicaram como era o funcionamento do lugar. Homens e mulheres não eram distinguidos, todos podiam frequentar qualquer parte ou ambiente, sem restrições. Não havia regra, mas, normalmente, os almoços eram feitos ao meio-dia pelo sol, e os jantares quando a lua já se apresentava dominante.

Os lugares eram o quarto, os campos de plantação e gado, a sala dos espelhos, o “refeitório” (que funcionava como cozinha também), um salão usado para enfermagem e outro vazio. Não havia cozinheiro, faxineiro, camareiro ou camponês. Ali, os “bens” eram fruto do trabalho individual e o excesso era comunitário, para emergências. Por se tratar de um mosteiro, eu obviamente pensei que, por não ser religioso, iria ficar uns dias para a meditação (que era feita em qualquer lugar), porém, estou aqui a mais de 5 anos.

Saio do quarto, me encaminho para o campo. As plantações de arroz se alastram por quilômetros, e o gado, que dorme, é suficiente para alimentar uma cidade, mas a simplicidade do mosteiro envolve (inconscientemente) deixar os animais viverem seu estado natural, e a natureza também.

Shaolin fica num vale praticamente sozinho na região, por isso, você pode se ver cercado de montanhas. Na maior delas, nota-se uma escadaria enorme, que dá numa pequena construção vermelha e dourada, onde ficam as águas. É para lá que vou.

Piso nos degraus da escadaria, gelados pelas horas sem contato com o sol, que a essa altura, apresenta um nascer esplêndido. Cada passo que dou relaxa mais o meu psico que a ótima noite de sono que tive, e me faz sentir cada pequeno músculo no meu corpo, fazendo uma espécie de Nirvana.

Ao fim da minha subida, vejo claramente toda a construção. Os pilares de madeira avermelhados, com todas as suas linhas características da árvore que foi cortada, O sol está quase alinhado com o topo da pequena casa, dando uma sensação de queimação na minha nuca. Apesar de ter feito uma subida de 3 horas, não me sinto cansado. Entro, e na água descem 3 fios de luz, posicionados em três pontos de divisão na jóia da Roda do Dharma desenhada ali.

Sento-me ali, fecho os olhos e medito, entrando num transe que só acaba quando abro meus olhos novamente. Sinto a força da claridade contra meus olhos, mas ela vai abaixando, e olho para o céu pela grande janela a minha frente, notando nas nuvens passando, carregadas e negras como meu espírito antes de encontrar esse lugar.

Mais ao fundo, nuvens leves com as quais me identifico, porém meu desejo é chegar ao céu azul. Ao olhar abaixo, vejo a imensidão da floresta que cerca os mares de morros, um verde convicto e belo, ainda não tocado pelos ambiciosos, só conhecidos pelos homens em seu estado mais natural. Mas, entre todas essas arvores belas, vejo uma movimentação que eu já conheço: a formação militar clássica da Guerra  Civil que está acontecendo.

O mais surpreendente não é a formação em si, mas o fato de ser facílimo de notar o quão feridos estão os soldados. Em aproximadamente 4 horas, eles chegarão ao templo, lugar que suponho ser o destino.

Desço calmamente as escadas, e na metade do meu percurso, a chuva começa. De onde estou, consigo ver todos fechando janelas e abrindo portas para quem quiser entrar. No fim, calculo que temos ainda uma hora antes da chegada dos feridos.

Abro a “enfermaria”, avisando a todos o que vi, e já vejo o movimento de preparação, colocando colchões forrados e ferve-se água, prepara-se alimento e macas, até que nossos “convidados” batem à porta.

-Olá?- diz quem aparenta ser o general daquela tropa – Estamos muito feridos, soubemos da existência deste mosteiro e precisamos da ajuda de vocês, meus soldados estão gravemente feridos.

Abrimos as portas e a tropa entra. O general logo se apresenta, seu nome é Bakiu Tremlaa,  e, logo de início, já conta a história de como e por que estão ali.

“Estávamos em uma batalha ao norte, contra revoltosos que reinvidicavam a devolução de impostos e posse de terras ao líder local. Meus soldados não tinham pólvora, somente nossas práticas no Wushu. Mas inesperadamente, os revoltosos utilizaram espadas e armas de fogo. Foi um massacre.

Mais da metade morreu, apesar de termos batido em retirada. Venho procurando um descanso e cuidados desde então, mas o governo já nos tomou com inúteis, mesmo com nossas habilidades”

Ofereci-me para dividir dormitório com Bakiu enquanto não havia instalações para todos, e isso aconteceu. Em certo horário, vou para o quarto, deito-me. Quando ele chega, só deita na cama posicionada abaixo da minha e dormimos silencio e impessoalmente.

E assim foi durante 3 dias.

Na manhã do 4º, o colega puxa um assunto. Pergunta meu nome e lhe respondo, friamente, Kwok Yuen. Logo me reconhece como ex-governador civil, e daí para frente criamos um tipo de amizade, uma que se desenvolve com o tempo, ficando forte a ponto de, 2 semanas depois, quando os 50 quartos para refugiados foram feitos, Bakiu permanece comigo.

Seguimos para uma rotina um pouco parecida. Acordamos cedo, e minha manhã começa com uma boa meditação no salão dos espelhos, a dele, se fechando no salão vazio. Ao fim de 2 horas, ambos se encaminham para o campo, para plantar e colher algumas coisas, pois logo em seguida, preparamos o almoço e o comemos. A diferença maior são as conversas diárias com seu antigo pelotão, enquanto eu falo com alguma alma também “desocupada”.

Certo dia, o indago sobre duas coisas: a razão das conversas com a tropa e o que faz ele todo dia no salão (o que observo ser também um hábito dos seus comparsas).

Kwok, se eu não me mostrar presente, quem vai mostrá-los o caminho?

-Ora, eles acharão o próprio caminho se deixarem-nos tentar andar com as próprias pernas.

-Entenda, eles precisam ser liderados. Essa é a natureza humana em seu mais elevado ser: uns nascem para seguir, outros guiar.

-Não é verdade- falo firmemente a Bakiu- Vejo bondade em seus atos, mas devo perguntar se não vê como esse poder que tem tanto te corrompe quanto eles.

-Eles sabem quem estão seguindo.

-E o gado só percebe a verdadeira face do pastor na hora do abate. Pergunto-lhe, se tu mandasses seus homens matarem todos nesse lugar, sem exceção, eles não o fariam?

-Naturalmente…

-Portanto, você tem uma influência não saudável sobre eles.

-Vejo seu ponto, mas não compreendo a saída que você procura.

-Bem, olhe o Templo em si. Não há um sequer líder, sim a união de diversas pessoas com um objetivo, unidas por umas vontade de viver de um jeito relativamente parecido. Aqui sim, há a forma natural que nós, seres humanos, perdemos na nossa história. Aqui sim, podemos ver a liberdade expressa em seu grau máximo, onde a minha liberdade permite a sua nunca acabar. Por esse motivo que estou, aqui, o mais próximo da minha paz.

-Desculpe a pergunta mas… você já praticou Wushu?

Já explicando, Wushu é um estilo da arte marcial chinesa, conhecida mundialmente pelo nome de Kung Fu. Essa arte é dividida em 3 partes principais de trabalho individual: corpo, mente e espírito. Apesar de morar na china desde sempre, nunca me aproximei muito, por desprezar o uso da força e achar sublime a retórica, e, posteriormente, a meditação pura. Nas minhas viagens à terra do papa Constantino, li sobre os maravilhosos Sofistas, sobre Sócrates, e admirei-os muito mais que os brutos guerreiros.

Após esse dia, descobri minha resposta para a minha outra pergunta. Todos os dias, Bakiu se punha a treinar incessantemente a Arte, até não ter mais forças para sequer subir alguns degraus de escada (sabe sei lá como que ia para as plantações). Meu amigo passa seus dias preparando-se para um conflito interno, não externo. Assim como eu, ele está perto de sua paz, mas algo falta para atingir o Nirvana.

Outras coisas também aconteceram, como o fim das conversas diárias, que foram substituídas para pequenos encontros semanais, para um treino em conjunto, com o objetivo de lutarem entre si. Todos já estavam bem, mas algo tinha mudado (tanto nos soldados quanto nos monges). Os monges, atrofiados por simplesmente meditarem e plantarem (numa espécie de ora et labora) começaram a, naturalmente, treinar Kung Fu. Os guerreiros, com remorço por toda morte e dor que causaram, por tanta inquietude, começaram a meditar. Começou algo perfeito, começou a Paz.

Bakiu me instrui no Kung Fu, onde eu finalmente encontro um momento de calma (e me torno um exímio artista) e eu o inicio  na arte da meditação.

Aos poucos, os treinos de Wushu passam a ser simultâneos, numa espécie de conexão de Shaolin inteira, sem raiva alguma, somente o perfeito equilíbrio entre o autocontrole budista e a coragem e disciplina dos artistas marciais. Nas lutas, vê-se um “problema”: ninguém ganha. Não pela falta de habilidade, mas pelo excesso e equidade dela entre todos.

Quando vou ao salão dos espelhos, fico no centro e vejo centenas de cópias minhas, todas me imitando, e começo a lutar comigo, travando um conflito apaziguado, que gera em mim a plena sensação de completude, e, depois de algumas horas meu amigo entra, e a luta passa de singular para plural. A luta começa lenta, ainda com falta de força, mas progressivamente avança, cresce, no ponto de quase não vermos os golpes de cada um.

Na hora do jantar, o sino toca e um estranho adentra o salão, trazendo uma carta,que passa de mão em mão e quando chega a minha, leio claramente:

“Aos Guerreiros do Templo de Shaolin, esta convocação para proteger o condado de Tahu.”

 

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